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Uma dieta vegan dificulta os ganhos de massa muscular?

Atualizado: 19 de fev. de 2022

Em mito bem comum e disseminado é que ganhar massa muscular se torna mais difícil com uma dieta vegan. Justificado pela "menor qualidade" das proteínas de origem vegetal. Tradicionalmente define-se a “qualidade” de uma proteína pela capacidade de a reter nas nossas moléculas e estruturas endógenas. O que chamamos de valor biológico (BV). O BV é condicionado essencialmente por duas características das proteínas – a digestibilidade e o seu perfil de aminoácidos. As proteínas animais apresentam por norma uma digestibilidade superior às proteínas de origem vegetal. Característica que se deve a factores como a estrutura, protecção por paredes celulares celulósicas que dificultam o acesso das enzimas, e até à presença de inibidores enzimáticos em alguns alimentos de origem vegetal. A proteína com maior digestibilidade conhecida é a do ovo inteiro, com elevado aproveitamento e assimilação dos aminoácidos que contém. Factor que contribui para o seu BV de referência, conjuntamente com um perfil de aminoácidos favorável e aproximado às nossas necessidades como mamíferos.


Valor biológico absoluto e relativo (ao do ovo) de algumas proteínas.


Pelo seu BV superior, é assumido que as proteínas de origem animal apresentam uma “qualidade” superior às vegetais. Embora em teoria seja verdade, na prática pouca diferença faz quando o consumo é excedentário ao absolutamente necessário para manutenção de um balanço azotado nulo. Não se verificam diferenças significativas nas adaptações hipertróficas com aportes superiores a 1,4 g/Kg, um valor ainda moderado e facilmente atingível mesmo por indivíduos estritamente vegetarianos. As limitações no que respeita à digestibilidade e perfil de aminoácidos são diluídas pela quantidade ingerida e combinação de várias fontes proteicas.


É verdade também que as proteínas de origem vegetal têm menos leucina do que as proteínas animais, e menos aminoácidos essenciais no geral. Como tal, sabendo que é a leucina que estimula a síntese proteica de forma directa poderíamos assumir que as proteínas vegetais são menos eficazes neste processo. O que efectivamente se verifica. No entanto, igualando a dose de leucina com um aporte superior essa diferença deixa de se verificar. Ingerir 24 g de proteína de soro de leite, com elevado teor de leucina, tem o mesmo efeito que ingerir 36 g de proteína de arroz ou 50 g de proteína de soja. Quantidades que igualam o teor de leucina nas 3 fontes.

Quantidade de proteína necessária para atingir o limiar sérico de leucina. Devries et al. 2015.


Existem muitos mitos à volta das dietas vegan e crença na sua limitação para hipertrofia muscular ou no desporto em geral. Mas a verdade é que a evidência não vai ao encontro dessa ideia. Como vimos, quando o aporte é suficiente para manter um balanço azotado positivo não se verificam diferenças nos ganhos de massa muscular ao longo do tempo. Nem o perfil de aminoácidos é limitativo com a combinação de várias fontes. Os cereais são por norma pobres em lisina, e as leguminosas em metionina. A combinação de ambos contorna as limitações individuais de cada fonte proteica.


No que respeita à hipertrofia muscular em específico, a principal limitação poderá ser o deficit em vitamina B12 inerente ao prolongamento de uma dieta vegetariana. Vitamina essa que intervém directamente no processo de síntese proteica. Não existe B12 nas plantas, nem elas precisam da B12 para nada. Trata-se de uma vitamina de produção bacteriana que a microbiota dos animais herbívoros produz e que acabam por acumular nos seus tecidos. E que é depois obtida por outros quando ingerimos a sua carne, órgãos, ovos ou leite. Nós não produzimos vitamina B12, e mesmo que assim fosse não a conseguiríamos absorver já que a microbiota se aloja no colon e não existem transportadores nessa região do intestino. Mas temos reservas nos tecidos que podem garantir a manutenção de níveis suficientes até 5 anos após o início de uma dieta vegetariana estrita. Assim, a suplementação com vitamina B12 é recomendável em vegetarianos estritos, preferencialmente com formas de elevada biodisponibilidade como a metilcobalamina.


Os vegetarianos apresentam por norma níveis de creatina intra-muscular mais baixos do que omnívoros. A creatina é sintetizada no organismo mas também obtida através da alimentação com o consumo de carne. Um omnívoro produz em média 1 g por dia e ingere uma quantidade idêntica. Um vegetariano depende em exclusivo da creatina que consegue produzir endogenamente. Como é óbvio, não existe um valor analítico sérico nem tal coiso como um deficit de creatina. Seria necessária uma biopsia para avaliar o nível de saturação muscular de creatina, o que obviamente não é viável em clínica. E como tal, a suplementação mesmo com uma dose baixa, na ordem das 2 g por dia, será útil em vegetarianos para aumentar a concentração muscular e aliviar a pressão endógena para a produzir. Que mobiliza recursos de metilação e gera homocisteína, uma substância pro-inflamatória associada a disfunção cardiometabólica. Que concentra em quadros de deficit de B12 já que esta é necessária à sua metabolização.


A soja é um recurso comum entre vegetarianos para satisfazer as necessidades proteicas devido ao seu teor elevado entre o Reino Vegetal e perfil de aminoácidos aceitável, mesmo sendo pobre em metionina e leucina. Mas nas últimas décadas a soja tem ganho má fama por dois motivos – a maioria da que existe no mercado é transgénica, e contém xenoestrogénios naturais que poderão afectar o equilíbrio hormonal do organismo. Quanto ao primeiro não merece grande destaque já que não existe evidência alguma sequer de que os transgénicos possam ser prejudiciais à saúde, e a legislação Europeia é bastante rigorosa com os organismos geneticamente modificados que têm de ser rotulados como tal.


A soja contém isoflavonas, substâncias que actuam como xenoestrogénios pela sua semelhança química e estrutural aos estrogénios endógenos. Possuem afinidade para o receptor estrogénico, embora bastante baixa em comparação. Existe um par de relatos na literatura de hipogonadismo em homens, baixos níveis de testosterona, associado ao consumo de soja que reforça o receio excessivo do seu consumo. Os xenoestrogénios são capazes de reduzir por retroinibição a produção das gonadotropinas necessárias à estimulação da produção de testosterona pelos testículos. Mas esses estudos meramente observacionais tratam-se estudos de caso em Ocidentais com consumos muito elevados mesmo para o habitual entre as populações Asiáticas. Cerca de 10 vezes superior à média no Japão, por exemplo. E sem um ensaio clínico que corrobore esta hipótese torna-se impossível estabelecer uma relação causa-efeito já que a evidência se resume à observação, estudos in vitro e em animais sujeitos a doses massivas. Quantidades dentro do razoável, mesmo que em base diária, não são expectáveis de afectar a produção de testosterona nos homens. E quando falamos de suplementos proteicos à base de soja muito menos já que quase 90% das isoflavonas são eliminadas no processo industrial de isolamento da proteína.


A principal dificuldade na estruturação de uma dieta vegetariana é quando pretendemos um aporte calórico baixo num enquadramento hiperproteico. A proteína está mais diluída nos alimentos de origem vegetal (figura). Para um homem de 75 Kg ingerir 2 g/Kg de proteína, não o poderia fazer com menos de 2100 kcal, e assumindo que passava o dia a comer lentilhas. Mas é também para estas situações que os suplementos existem, e aí facilmente conseguimos manipular a dieta para as proporções macronutricionais e valor energético que pretendemos.


Quantidade de alimento necessária para atingir 25 g de proteína


O vegetarianismo é uma tendência crescente na actualidade que veio para ficar. Por motivos de sustentabilidade ou éticos, não discuto. Mas não é legítimo assumir à partida que a abolição do consumo de alimentos de origem animal traz benefícios directos à saúde. Uma elação retirada da interpretação abusiva de estudos observacionais que não permitem isolar o efeito de uma variável sobre outra, muito menos das suas interações múltiplas. Por mais artifícios estatísticos que sejam usados. Os vegetarianos têm no geral uma maior consciência e cuidado com a alimentação, têm outros hábitos de saúde mais favoráveis, fumam menos, têm por norma um grau de escolaridade superior, etc. Todos factores que se associam positivamente à saúde de uma forma genérica. Nem exemplos individuais de atletas que se tornaram vegan são prova de um impacto positivo na performance, ou de atletas de topo que não comem carne. Apenas mera propaganda. Se é possível ter boa performance e ganhar massa muscular numa dieta vegan? Sim. Se é inerentemente melhor do que uma dieta omnívora? Não.

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