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Foto do escritorSérgio Veloso

Crononutrição: pequeno-almoço de rei, almoço de príncipe, jantar de pobre

Estamos, ou estivemos, formatados para olhar a nutrição apenas na sua componente quantitativa, a quantidade do que comemos, e qualitativa, os alimentos que escolhemos. Mas cada vez mais evidência surge para a importância de uma terceira – a componente temporal, cronológica, das refeições. E é esta componente que a crononutrição estuda. A interação entre os nossos ritmos biológicos, alimentação e saúde. De que forma distribuímos a energia e nutrientes ao longo do dia, a frequência alimentar, a regularidade e consistência com um padrão horário, e a janela alimentar. O período em que nos alimentamos vs o tempo que estamos em jejum. E tudo isto tem implicações na nossa saúde.


Os primeiros estudos e observações nesta área não são recentes. Já há mais de 100 anos que surgiram as primeiras evidências científicas, em ratinhos. Viu-se que se os mantivermos com horários alimentares restritos, mesmo sem restrição energética, isso leva a um alinhamento comportamental e fisiológico ao período de alimentação. Desenvolvem actividade antecipatória, quer locomotora, ficam mais activos, quer fisiológica através de respostas hormonais e nervosas de antecipação do alimento. Além disso basta observar o comportamento do ratinho para perceber que naturalmente mantém um padrão horário nas suas refeições. Se os deixarmos livres e com acesso ad libitum à comida, é durante a noite que ingerem mais de 70% da sua energia diária. Sendo eles animais noctívagos, activos durante a noite.


Também nós temos vários parâmetros fisiológicos que apresentam variação periódica ao longo do dia. Por exemplo, a temperatura corporal, mais alta durante a tarde e com um pico entre as 15 e as 17 horas. Altura em que o nosso dispêndio energético é também maior, tal como a actividade do sistema nervoso simpático. Os ácidos gordos livres em circulação também atingem o seu máximo por essa altura, e os triglicéridos são mais elevados durante a noite. Período em que a insulina estará também mais baixa. A melatonina começa a aumentar ao início da noite, com a diminuição da exposição à luz. O ponto em que a melatonina começa a subir é o chamado Dim Light Melatonin Onset (DLMO), um indicador do nosso marca-passo circadiano pela importância que a própria melatonina tem no orquestrar de todo o nosso relógio biológico, e sincronização entre o relógio central e relógios periféricos.



Além dos aspectos já mencionados, o cortisol é mais alto de manhã, tal como a testosterona num homem jovem. A pressão arterial é máxima por meio da tarde. A síntese de colesterol é mais alta durante a noite, temos mais força muscular e coordenação pela tarde. De manhã o fígado sintetiza mais glicogénio, de noite produz mais glicose. O pâncreas liberta mais insulina de manhã, e a capacidade de a secretar diminui pelo meio da tarde devido ao aumento da actividade simpática. De manhã os adipócitos produzem mais adiponectina e a adipogénese é mais eficiente, a formação de novos adipócitos. De noite eles produzem mais leptina e libertam mais ácidos gordos. E isto não tem apenas a ver com os nossos comportamentos, por exemplo o horário das refeições que fazemos. Embora isso possa condicionar com o tempo a nossa resposta fisiológica. Mesmo quando o estímulo está ausente ou muda, a resposta tende a manter-se. É autossustentada.


Podemos definir um relógio biológico da seguinte forma. Existe um input, o estímulo, que chamamos de zeitgeber, “dador de tempo” em alemão. Esse input é integrado por um oscilador, um sistema autossustentado que oscila num período de 24 horas, e que vai dar origem a uma resposta – o output. A secreção de uma hormona, a expressão de uma enzima, o que for. O nome circadiano vem do latim “circa diem”, “cerca de um dia”. Daí chamarmos ciclo circadiano quando o período é de 24 horas. Quando é inferior chamamos de ultradiano, e quando superior será infradiano. Como o ciclo menstrual por exemplo.





Esse oscilador que falámos é uma Transcription/translation feedback loop (TTFL) com 4 componentes principais e que estão presentes em praticamente todos os tipos celulares. Os factores de transcrição CLOCK, BMAL1, PER e CRY. O CLOCK e o BMAL1 formam um complexo heterodimérico que se liga a uma região promotora no DNA específica, a E-Box. São vários os genes regulados por esta E-Box, que chamamos de ccgs, ou clock controlled genes. Entre eles estão o PER e o CRY, que formam eles próprios um dímero que inibe o complexo CLOCK-BMAL1. O PER e o CRY vão-se acumulando durante o dia, estimulados pelo CLOCK e BMAL1, atingindo à noite uma concentração que permite entrar no núcleo inibir o complexo. Os genes controlados pelo CLOCK-BMAL1 deixam de estar activos. E ficam activos os controlados pelo PER e CRY. Ainda durante a noite o PER e CRY começam a ser degradados pelo proteossoma, o que permite a activação novamente do CLOCK e BMAL1 ao início do dia. Trata-se de uma loop de activação e inibição da transcrição e tradução génica, com um período de 24h.





Além desta loop que descrevemos, a principal, existem outras secundárias que estabilizam e reforçam a manutenção do ciclo. Não nos vamos estender com elas, mas existem e são importantes para a regularidade do ciclo. E a sua existência só reforça a importância biológica dos ciclos circadianos, ou não seria sequer necessário termos mecanismos redundantes e de reforço para evitar que sejam perturbados. De que forma estas loops regulam os nossos processos fisiológicos? Por exemplo através da expressão/repressão de enzimas limitantes de uma via metabólica. A HMG-CoA redutase é limitante na síntese de colesterol e está mais activa à noite. Ou também através da expressão temporal de reguladores da transcrição génica. Ou ainda através da expressão de receptores nucleares hormonais. Dos 45 que conhecemos, mais de metade revela variação circadiana.


Mas esta TTFL também é regulada pelo nosso metabolismo, e por isso nós conseguimos estragá-la com os nossos comportamentos e assincronia. A AMPK por exemplo fosforila e promove a degradação do CRY. Como é uma espécie de sensor do nosso estado energético, deverá estar mais activa no período de jejum e sinaliza a degradação do CRY para que o complexo CLOCK-BMAL1 possa voltar à actividade de manhã. O AMPK também estimula as sirtuinas, nomeadamente a SIRT1, que por sua vez inibe a função de histona acetil-transferase do CLOCK e reduz também a sua actividade. Por outro lado, o mTOR aumenta a actividade do PER. E o mTOR é estimulado pela insulina, factores de crescimento, e disponibilidade de aminoácidos, que desta forma são também factores de influenciam a actividade circadiana através do que comemos. E há muitos mais. Por exemplo, o PER inibe o PPAR-g no tecido adiposo e pré-adipócitos. Quando o PER diminui de manhã, a adipogénese aumenta e mais adiponectina é produzida. Além disso a re-esterificação de ácidos gordos também aumenta. Os adipócitos tornam-se mais eficientes a reservar energia de manhã, para a libertar posteriormente no dia e ser usada pelo tecido muscular. Que por sua vez tem maior capacidade oxidativa a partir da tarde.



Todas as espécies evoluídas desenvolveram mecanismos cronobiológicos como este que descrevemos. Isso permite-lhes prever, antecipar e adaptar-se a estímulos recorrentes. A disponibilidade de alimento por exemplo. E como estes mecanismos mantêm uma periodicidade autónoma, esse estímulo passa a ser antecedido por uma resposta preparatória. Mas embora os relógios biológicos sejam autónomos e autossustentados, eles mantêm a capacidade de resposta aos estímulos externos para que se possam adaptar a novos padrões de comportamento ou de ciclo dia/noite. Quando mudamos de fuso horário por exemplo. Desde que por tempo suficiente para que o relógio seja ressincronizado. Se esse tempo não for dado, estamos num quadro de desalinhamento circadiano com sérias implicações na nossa saúde.


Nos mamíferos em geral o relógio biológico funciona como uma rede hierárquica que oscila num período de 24 h, com um marca-passo central, que reside no núcleo supraquiasmático (SCN) no hipotálamo, e uma série de relógios periféricos nos diferentes tecidos e órgãos. Fígado, músculo, tecido adiposo, etc. O relógio central regula os periféricos e marca o ritmo se tudo estiver alinhado. E é a luz o estímulo maestro que sinaliza ao núcleo supraquiasmático através do tracto retinohipotalâmico aquilo que são os ciclos dia/noite, ou luz/escuridão. É no SCN que reside o oscilador, que gera o output rítmico. Variação periódica da temperatura corporal, secreção hormonal, fome, etc. Através do sistema nervoso autónomo ou por estímulos humorais, hormonas por exemplo, regula a actividade dos vários órgãos e os seus osciladores internos. Um desses factores humorais é a melatonina, produzida na pineal por acção directa da luz. A luz inibe os neurónios pré-sinápticos que comunicam com o núcleo supraquiasmático. Quando fica escuro essa inibição é aliviada e o núcleo supraquiasmático pode então comunicar à pineal para produzir melatonina. Quando fica dia o trato retinohipotalâmico é inibido novamente e a melatonina não é produzida.


Mas o núcleo supraquiasmático comunica com outras regiões do sistema nervoso central. Com o núcleo paraventricular por exemplo, importante na regulação do dispêndio energético e apetite, com o hipotálamo lateral, também muito importante na regulação do apetite. Com o núcleo arcuato, também implicado na regulação do apetite e sistema endócrino. Uma zona sensível à acção da insulina e leptina por exemplo. Mas o SCN também comunica com o tronco encefálico, nomeadamente com o núcleo do tracto solitário e parabraquial, que são regiões importantes na termorregulação, controlo da glicemia, e percepção sensorial do exterior e das vísceras. São regiões que integram os sinais vindos dos órgãos viscerais, que também eles podem modular o ritmo circadiano de acordo com o horário e constituição das refeições, por exemplo.



Se os nossos ritmos biológicos são sincronizados por inputs como a luz e refeições, percebe-se que facilmente podemos desalinhar os ciclos com exposição à luz durante a noite, refeições irregulares, qualitativamente desadequadas, e fora do período de alimentação fisiológico. Todo o sistema começa a colapsar e a funcionar de forma assíncrona.


O nosso estilo de vida com um padrão alimentar irregular, tardio, com uma janela alimentar estendida durante a noite, leva a esse desalinhamento circadiano. O timing das refeições é um zeitgeber particularmente importante para os relógios periféricos, mais do que para o central no SCN. Se nós alimentarmos ratinhos durante o dia eles vão exibir uma inversão de fase no fígado e tecidos periféricos, mas não no SCN que parece ser um marca-passo mais robusto que se mantém mesmo quando os estímulos externos são removidos, ou se os estímulos periféricos se tornam incongruentes. Pelo menos a curto prazo. Portanto o que vamos fazer é alterar todo o ritmo oscilatório dos relógios periféricos, e desalinhar o central da periferia.



Scheer et al. (2009) forneceram a um grupo de adultos saudáveis 4 refeições isoenergéticas, pequeno-almoço, almoço, jantar e ceia, alinhadas com o ritmo circadiano, durante o dia, ou 12h fora de fase durante 10 dias. Portanto num padrão totalmente invertido. O que se verificou foi que o desalinhamento circadiano levou a níveis de glicemia e insulina pós-prandiais superiores, menos leptina, que é uma hormona importante para a saciedade, um aumento da pressão arterial, inversão do ritmo biológico do cortisol, e pior qualidade de sono. É de pensar o dano que este desalinhamento recorrente, por anos, pode provocar a nível metabólico.


Mas também é interessante verificar que manter o horário das refeições síncrono, portanto inalterado e diurno, previne parcialmente o desalinhamento circadiano que resulta numa maior intolerância aos hidratos de carbono em trabalhadores por turnos, 12 h fora de fase (Chellappa et al. 2021). Por outras palavras, mesmo estando activo à noite, não comer nessa fase atenua, pelo menos a curto prazo, o dano metabólico causado pela disrupção circadiana e a homeostase glicémica anormal com as refeições assíncronas que fazemos.


A glicemia e insulinemia são parâmetros fisiológicos que sofrem regulação circadiana. Se ingerir 50 g de glicose às 9:00 da manhã, 15:00 da tarde ou 20:00 da noite a resposta será distinta. No gráfico à direita têm a variação da glicemia e fica claro que se a glicose for ingerida às 9:00 os níveis de glicose não sobem tanto como quando é ingerida às 15:00 ou as 20:00. Por outro lado, a elevação da insulina tende a ser maior pela manhã. Não se apressem a ver isto como um fenómeno negativo. Antes pelo contrário. A maior subida da glicemia e intolerância aos hidratos de carbono em fases posteriores do dia está também relacionado com a menor secreção de insulina. Menos libertação de insulina, níveis de glicose mais altos. O aumento da actividade simpática a partir do meio da tarde inibe a libertação de insulina pelo pâncreas, e de noite é a própria melatonina que o faz. Além disso há mais ácidos gordos livres em circulação de tarde e noite, o que aumenta a resistência à insulina e compromete a sua acção. A intolerância aos hidratos de carbono é maior ao fim de tarde e noite.





Em relação à glicemia, a maior tolerância de manhã é explicada por um factor adicional. Durante a noite, em que supostamente mantemos o jejum, o fígado liberta glicose para a circulação que tem armazenada como glicogénio. E de manhã é preciso repor esse glicogénio. Sabe-se que os transportadores de glicose GLUT-2 têm expressão circadiana e estão em maior quantidade de manhã no fígado. É ávido em captar glicose de circulação para regenerar o glicogénio gasto. O que se traduz numa boa tolerância aos hidratos de carbono nesse período. Não é apenas o facto de o glicogénio estar depletado ou parcialmente depletado. É suposto isso acontecer e a expressão dos transportadores e enzimas respondem em antecipação.


Também não gastamos energia a um fluxo contante ao longo do dia. A nossa taxa metabólica é mais alta a meio da tarde, resultado do maior tónus simpático. E da mesma forma, há uma alternância de substratos energéticos preferenciais ao longo do dia. A oxidação de lípidos é maior a partir da tarde, também a concentração de ácidos gordos livres em circulação, e a oxidação de hidratos de carbono maior pela manhã. Claro que esta alternância é condicionada pela oferta, mas sem ingestão é essa a variação biológica intrínseca. Que como vêm também revela um ritmo circadiano.


Na prática o que isto significa? A oxidação de lípidos como fonte de energia inibe a utilização de hidratos de carbono. O chamado ciclo de Randle da alternância de substratos energéticos. Além disso a concentração de ácidos gordos em circulação é também maior pela tarde devido à lipólise mais acentuada. Os ácidos gordos inibem a acção do receptor de insulina. Logo durante a tarde e noite vamos usar menos glicose, além de produzirmos menos insulina e desta ser menos eficiente. A glicemia sobe mais. Somos mais intolerantes aos hidratos de carbono que serão menos utilizados pelos tecidos periféricos.


Mas esses ritmos biológicos relativos à metabolização dos hidratos de carbono e lípidos não estão alinhados com aquele que é o padrão alimentar dominante nas sociedades modernas. Em que o jantar tende a ser a refeição mais substancial e calórica, e já tarde no dia. Claro que isso está relacionado com o nosso estilo de vida e dinâmica do dia-a-dia. Para muitos é a única refeição feita com calma e em família. Mas lá está. A tendência dos indicadores de saúde também não é muito animadora. Tudo indica que estaríamos mais preparados e que seria mais benéfico um padrão alimentar alinhado com o período de luz, e em que a maior parte da energia fosse ingerida pela manhã até ao início da tarde. Ou na pior das hipóteses que o jantar, sendo tardio, fosse uma refeição mais leve. “Pequeno-almoço de rei, almoço de príncipe, e jantar de pobre”. Esta frase de Maimonides (1135-1204) com quase mil anos faz todo o sentido. Uma proposta que alinha o comportamento alimentar com o que se conhece dos nossos ritmos biológicos intrínsecos.


Mas será o pequeno-almoço a refeição mais importante do dia? Embora o que falámos possa dar a entender que sim, a resposta não é tão simples. Existe de facto um amontoar de evidência epidemiológica no sentido de um efeito protector para quem toma o pequeno-almoço. Associa-se a menor risco de obesidade, doença cardiometabólica e mortalidade. Da mesma forma, quem não o toma parece em maior risco de obesidade. Isto quando olhamos para a evidência observacional, epidemiológica. Que por si não permite estabelecer uma relação causa-efeito e a direccionalidade dessa associação. Sabe-se que à toma do pequeno-almoço estão associados outros hábitos saudáveis, como exercício, horários regulares, e uma qualidade alimentar superior. Um padrão alimentar mais matutino está de facto associado a melhores índices qualitativos da dieta em geral.


É também verdade que estudos observacionais relacionam o hábito de não tomar o pequeno-almoço com maior risco de diabetes tipo II. Mekary et al (2012) acompanharam a coorte do US Health Professionals Follow-up Study. Homens num regime alimentar Ocidental de baixo score qualitativo que nunca comiam antes do almoço tinham um aumento do risco de diabetes tipo II em 23%, comparado com quem comia pelo menos uma vez e tinha igualmente esse padrão alimentar mau. Dilui-se assim o confundimento com a associação conhecida entre comer de manhã e melhores índices qualitativos da dieta.


Quando passamos à análise dos estudos de intervenção, os resultados não são assim tão claros e até contraditórios. Pôr pessoas que habitualmente não tomam o pequeno-almoço a comer de manhã não parece levar a uma perda de peso. E as meta-análises desses mesmos estudos concluem isso mesmo. Não parece existir vantagem de pôr quem não toma o pequeno-almoço a tomá-lo regularmente. Na verdade, alguns sugerem que pode traduzir-se num efeito inverso, com aumento do aporte calórico total diário se a dieta não for rigidamente controlada. Portanto temos aqui evidência até algo conflituosa. Estudos epidemiológicos a sugerir um efeito benéfico do pequeno-almoço, mas ensaios clínicos que não o provam. E considerando a hierarquia de evidência, o benefício do pequeno-almoço não parece existir ou estará associado a outras variáveis.


Mas talvez a pergunta esteja a ser feita de forma errada. Em primeiro lugar não é fácil interpretar os questionários de frequência alimentar usados nos estudos observacionais. Estão desenhados para caracterizar o que se come e não quando se come. Uma refeição logo ao acordar pode ser considerada pequeno-almoço, e uma 2 ou 3 horas depois também se for a primeira do dia. Além disso há diferenças culturais substantivas na constituição e horário do pequeno-almoço, e das refeições em geral. Um almoço cedo para um espanhol será por volta das 14:00. Para nós portugueses não. O horário normal de jantar para um nórdico será pelas 6 da tarde. Isso para nós é um jantar bem cedo, ou até um lanche tardio. Talvez a questão não seja o pequeno-almoço em si, como primeira refeição no período que antecede o almoço, mas sim a distribuição da energia ao longo do dia, as ocasiões em que nos alimentamos, e a regularidade desse padrão alimentar.


A evidência sugere isso mesmo. Que relativamente à toma do pequeno-almoço, independentemente da definição que lhe dermos, o mais importante parece ser a regularidade no padrão alimentar. Indivíduos que o tomam sempre ou que nunca o tomam parecem igualmente favorecidos na associação com o ganho de peso. Quem o toma de vez em quando está em maior risco, o que reflete provavelmente um padrão também menos rotineiro com as outras refeições e hábitos em geral. Com disrupção das tais respostas antecipatórias periódicas que falámos. Mulheres que tomam o pequeno-almoço sempre ou nunca têm uma probabilidade 11-22% menor de obesidade comparativamente a quem o toma irregularmente (Guinter et al. 2020).


Farshchi et al. (2005) avaliaram o impacto de um padrão alimentar regular, com 6 refeições em horários fixos durante 2 semanas, comparado com um padrão irregular durante o mesmo período. Entre 3 a 9 refeições por dia, em horários variáveis. O que se verificou foi que com um padrão regular houve uma redução do aporte calórico total, embora ligeira. Mas além disso, verificou-se um aumento no efeito térmico da refeição, que reflete um aumento no gasto calórico após a ingestão. E níveis de insulina mais baixos com o padrão regular, indicadores de maior tolerância aos hidratos de carbono.  Ora isto resulta das tais respostas antecipatórias associadas aos estímulos periódicos. O nosso metabolismo adora rotinas. A previsibilidade que só a rotina permite.


Focando na questão mais importante, que não é a toma do pequeno-almoço mas sim a distribuição do aporte calórico num padrão mais matutino ou tardio, há de facto evidência com base em ensaios clínicos da vantagem de um padrão mais precoce no dia. Jakubowicz et al. (2013), comparou dois grupos com dietas isocalóricas mas um com um pequeno-almoço de 700 kcal e jantar de 200 kcal, e no outro o inverso. Pequeno-almoço de 200 kcal e jantar de 700 kcal. Em ambos o almoço tinha 500 kcal previstas. Ao fim de 12 semanas, o grupo com maior aporte energético de manhã perdeu mais peso e mais perímetro abdominal. O score de saciedade era superior, a tolerância aos hidratos de carbono maior, e os níveis de insulina mais baixos. Qualquer perda de peso só é conseguida mantendo déficit calórico, e apesar de em teoria o deficit ser idêntico em ambos os grupos, o grupo que comia mais de manhã ou estava a comer menos ao longo do dia, ou estava a gastar mais de forma voluntária ou involuntária. Mas independentemente do motivo a vantagem parece existir.


Um outro estudo com desenho semelhante verificou que com um aporte energético maior de manhã a termogénese induzida pelas refeições era maior (Richter et al 2020). As pessoas acabavam por gastar mais energia de forma involuntária quando comiam mais de manhã. Além disso, à semelhança do estudo de Jakubowicz, a glicemia era menor no grupo com maior aporte calórico de manhã, e a tolerância aos hidratos de carbono maior. Também apresentaram um maior score de saciedade e menos cravings por doces durante todo o dia. Aspectos que só por si são vantajosos para a perda ou manutenção do peso.


Então se saltarmos o pequeno-almoço e a primeira refeição for só o almoço, o que acontece? Tendo uma refeição de manhã após acordar, a glicemia sobe como é óbvio. Mais do que se não comermos nada. Até aqui tudo certo. Mas a resposta ao almoço será substancialmente diferente. O grupo que come de manhã tem uma resposta glicémica muito menor em resposta à mesma refeição comparativamente aos que não o tomaram. E daí em diante a glicemia tende a ser superior no grupo que não comeu de manhã, levando a uma exposição total ao longo do dia substancialmente superior.





Ora, isto acontece porquê? Já vimos que a tolerância aos hidratos de carbono pela manhã é maior e que isso se deve em muito ao fígado que é mais eficiente na captação da glicose. A insulina sobe mais com a primeira refeição, o que tem dois efeitos positivos. Inibe a produção de glicose por parte do fígado, o que facilita o controlo da glicemia depois de uma refeição, e inibe também a libertação de ácidos gordos livres pelo tecido adiposo. A concentração sérica de ácidos gordos não-esterificados cai drasticamente. Ora a tolerância aos hidratos de carbono é inversamente proporcional à quantidade de ácidos gordos livres em circulação, que reduzem a sensibilidade à insulina. Se eu não como nada de manhã, os ácidos gordos livres em circulação vão continuar a aumentar. Quando como à hora de almoço estou mais resistente à acção da insulina, e a glicemia dispara. Porque o fígado também já não é tão eficiente na captação de glicose para sintetizar o glicogénio.


Uma das consequências destes picos glicémicos superiores ao longo da tarde quando não tomamos o pequeno-almoço é precisamente a nível do apetite. O nosso sistema nervoso central tem grupos celulares que funcionam como glucossensores que estão constantemente a monitorizar a glicemia. Quando baixa eles vão iniciar uma resposta fisiológica que aumenta o apetite. A questão é que eles não são sensíveis ao nível absoluto de glicemia, mas sim às variações. À amplitude da variação nos níveis de glicose no sangue. Se a glicemia sobe muito, o retorno ao basal é uma variação de grande amplitude que vai ser entendida como uma quebra energética. O que vai resultar num aumento do apetite. Vamos acabar por comer mais ao longo do resto do dia, e em especial à noite quando a tolerância aos hidratos de carbono tende a ser progressivamente menor. A estabilização da glicemia ao longo do dia ajuda no controlo do apetite. E comer de manhã, concentrando o grosso do aporte calórico até metade do dia activo, parece ajudar nesse controlo. O que se vai traduzir também numa gestão do peso mais favorável.


Um dos motivos pelos quais a insulina sobe tanto de manhã, mas com um aumento à tolerância aos hidratos de carbono pós-carga, é uma outra hormona que também tem uma resposta diferente ao longo do dia - o GLP-1. O GLP-1 aumenta a libertação de insulina pelo pâncreas, inibe a neoglucogénese hepática, tem um efeito saciante a nível do sistema nervoso central, atrasa o esvaziamento gástrico, entre outras acções que beneficiam o controlo da glicemia e apetite.


Um outro aspecto que pode contribuir para a maior tendência para o ganho de peso quando se salta a refeição da manhã é a redução da actividade física espontânea e da estruturada. Talvez por se sentirem menos energizadas, não comer de manhã faz com que as pessoas se tornem menos activas nesse período sem compensação posterior. E isso por si pode contribuir claro para um menor dispêndio energético diário.


Além da distribuição da energia ao longo do dia, se comemos mais de manhã ou há noite, há um outro aspecto em crononutrição que merece referência. A janela alimentar. O período em que nos alimentamos, entre a primeira e última refeição. O time-restricted feeding tem sido muito estudado e alvo de grande interesse nesta época em que o Jejum Intermitente é tão mediático. No fundo trata-se de restringir e reduzir a janela horária da alimentação. O modelo mais comum é o 16:8, com uma janela alimentar de 8 horas. Agora esta janela alimentar pode ser mais matutina ou tardia, e já iremos a este assunto. É verdade que existe uma relação entre o peso corporal e a duração da janela alimentar (Chow et al. 2020). Quanto mais estendida, maior o risco de ganho de peso. Logo a lógica sugere que a reduzir pode ajudar a perder peso, e de facto parece ser o caso. Menos tempo para comer pode fazer com que se coma menos. Não é preciso ser um génio para entender isso. E de facto refeições tardias, já próximas do horário de deitar, associam-se a um aumento do aporte energético e das ocasiões para comer (Reid et al. 2014).





Comparando o padrão alimentar de 12 horas, entre as 8 da manhã e 8 da noite, e um regime de early time-restricted feeding (eTRF), comendo apenas entre as 8 da manhã e 2 da tarde, durante 6 horas, os dados sugerem que o padrão restrito leva a uma diminuição da insulina pós-prandial, melhoria da sensibilidade à insulina, redução da pressão arterial, e menos apetite à noite (Sutton et al. 2018). Claro que ficam algumas questões por responder. É natural que uma redução de 6h na janela alimentar tenha levado a uma redução do aporte energético, e que isso seja suficiente para explicar os benefícios. Além disso, a janela alimentar de 12 horas não caracteriza os hábitos das sociedades modernas ocidentais, onde se estende por 15 horas em média. São 14h e 45 min na população americana para ser exacto. E estas 2 horas adicionais à noite podem fazer alguma diferença.


Mas interessa-nos mais comparar dois modelos de time-restricted feeding, um mais matutino e outro mais tardio. No estudo de Vujovic et al. (2020) foram comparados, um com a janela alimentar de 8 horas entre as 9:00 e 17:00, e outro entre as 13:00 e as 21:00. Dietas isoenergéticas em que as refeições das 13:00 e das 17:00 eram idênticas. Mas num dos grupos havia uma refeição às 9:00 e no outro essa refeição era as 21:00. O padrão alimentar mais tardio verificou um menor dispêndio energético e temperatura corporal, mais fome durante o dia e uma redução concordante nos níveis de leptina. O estudo foi curto para perceber se isto se traduz em ganho de peso ou menor perda, mas em condições de ambulatório não é abusivo pensar que sim. Mas quero sublinhar também outras conclusões do estudo, nomeadamente alterações na expressão génica do tecido adiposo no grupo com padrão mais tardio, indicativas de uma adaptação para maior capacidade de reserva. Um padrão mais tardio, e, por conseguinte, com um período de jejum maior entre acordar e a primeira refeição, parece preparar o corpo para reservar energia ao invés de a mobilizar.


Notamos também que, a partir da primeira refeição, a utilização de hidratos de carbono como fonte de energia foi sempre superior no grupo com padrão tardio. E logicamente a utilização de lípidos menor ao longo da tarde até à última refeição. Também Kelly et al. (2020) verificou que quem toma o pequeno-almoço e não come à noite, neste caso depois das 18:00, mantém uma maior utilização de lípidos como fonte de energia ao longo do dia. E quem come tardiamente tem maior dependência pelos hidratos de carbono. Dependência energética claro.





E que implicações isso tem? O nosso corpo alterna entre a utilização de glicose e ácidos gordos como fonte de energia. Depois de uma refeição a glicemia sobe e a glicose passa a ser a fonte principal. No período pós-prandial a glicemia normaliza e os ácidos gordos tornam-se fontes energéticas preferenciais no tecido muscular. Se há um aumento da demanda por hidratos de carbono na fase pós-prandial, quando não estamos a comer, é o fígado que assume o papel de fornecer essa glicose que tem armazenada como glicogénio.


O fígado é o órgão central na partição energética e está ligado ao sistema nervoso central através do nervo vago até ao tronco encefálico. Os níveis de glicogénio são no fundo um indicador das nossas reservas energéticas, e o seu estado é sinalizado directamente ao cérebro. Se os níveis estão baixos, o fígado envia um sinal de que é preciso comer. A fome aumenta. Então se a dependência pelos hidratos de carbono aumenta quando não estamos a comer, no período pós-prandial, o apetite tende também a aumentar. É o que parece acontecer quando comemos à noite. No dia seguinte ficamos mais dependentes dos hidratos de carbono para produzir energia, o fígado tem de alocar mais glicose para o músculo, e a fome tende a aumentar. Acabamos por comer mais.


Acredita-se que os ciclos de depleção/repleção de glicogénio funcionem como um sincronizador do relógio hepático com o marca-passo central no hipotálamo. Já vimos que de manhã o fígado está mais ávido e capaz de sintetizar glicogénio. Expressa mais GLUT-2 e a bateria enzimática necessária. Um distúrbio neste padrão, por exemplo não comendo de manhã e mantendo o glicogénio hepático baixo durante o dia, é um factor de desalinhamento circadiano que poderá influenciar negativamente aspectos como a homeostase glicémica.


Estudos em ratinhos são mais claros nesta relação. Que os benefícios da redução da janela alimentar são maiores quando está alinhada com os ritmos biológicos. Que no caso dos ratinhos é inverso ao nosso. São activos de noite e esse deve ser o seu período de alimentação. Em humanos as coisas não são tão claras. Nunca são. É verdade que a redução da janela alimentar a 8-10 horas pode por si trazer benefícios, independentemente do período em que ocorre. Pelo menos se acompanhada por uma perda de peso e redução do aporte calórico. Mas tal como temos vindo a falar, tudo indica que é mais benéfico garantir o alinhamento dos relógios biológicos periféricos e central com os estímulos congruentes das refeições. Isto é conseguido com um padrão alimentar regular e mais matutino, com menor aporte energético tardio.


E esta associação não parece depender do cronotipo. Sabemos que há pessoas com um cronotipo mais matutino, outras mais vespertino ou tardio. Que são mais activas de manhã ou de noite, e que o apetite normalmente reflete essa actividade. Mas mesmo esses com um cronotipo mais tardio parecem em maior risco de obesidade, diabetes e síndrome metabólica. É também verdade, e convém sublinhar, que esse cronotipo tardio está também associado a piores hábitos de saúde em geral. Comem mais, comem pior, têm uma pior higiene de sono, e são tendencialmente menos activos. Isto de uma perspetiva populacional claro. Mas interessante também é uma possível associação bidireccional entre dieta e cronotipo. Estudos em ratinhos sob uma dieta high-fat e hipercalórica mostram que o período de actividade locomotora aumenta e reduz a amplitude da variação dos ccgsnos órgãos periféricos. A própria dieta em si parece levar ao desalinhamento circadiano. Também a alimentação poderá assim condicionar o cronotipo.


Portanto, quando falamos em nutrição não podemos mais focar-nos apenas na quantidade e qualidade. Não interessa só o quanto comemos e o que comemos, mas também o quando comemos. E o foco está cada vez mais aqui, na disciplina emergente da crononutrição. É verdade que ainda está na sua infância científica, e por isso existem tantas perguntas quanto respostas. Ou mais até. Mas pelo que se sabe hoje parece que de facto estamos adaptados a um regime alimentar síncrono com a luz solar, regular em horários, e com uma janela alimentar mais curta do que é norma nos países modernos em que se estende pela noite. Este jet lag social poderá ser de facto um dos motivos que explica a deterioração da nossa saúde. Foi escrito há quase mil anos, mas nunca como hoje fez tanto sentido factual. Um “pequeno-almoço de rei, almoço de príncipe, e jantar de pobre”.

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