Em 2019 o jejum intermitente (IF, de Intermittent Fasting) destronou a dieta cetogénica no pódio das pesquisas no Google Trends, uma boa métrica do impacto e interesse global em estratégicas nutricionais específicas. A curiosidade é muita em relação a este modelo alimentar que surgiu inicialmente de alguns estudos em modelo animal e unicelulares nas áreas científicas da longevidade e doenças neurodegenerativas, mas que depressa se alargou à composição corporal e doenças cardiometabólicas. Aqui já existem alguns estudos em humanos que iremos analisar numa perspectiva crítica e científica do IF. Num Mundo onde a informação corre à velocidade alucinante das redes sociais, o rigor fica muitas vezes em segundo plano.
A verdade é que o jejum já nos acompanha há muito. Seja pela abundância intermitente de alimento que seria de esperar ao longo da nossa história evolutiva mais distante, ou como forma de penitência para expiar os pecados da vida mundana. Uma purificação pelo sacrifício. São muitas as religiões que o preconizam. Temos o Ramadão entre os Muçulmanos por exemplo, um grupo bastante estudado neste contexto, mas mesmo em outras religiões e vertentes mais ortodoxas encontramos períodos de jejum como forma de purgar o mal. O jejum tem por si alguma mística e romantismo, e não é de estranhar que penetre tão bem entre as pessoas e que seja um modelo bastante aceite.
Em defesa da correção, o jejum intermitente não deverá ser considerado uma dieta em sentido estrito, mas sim um padrão alimentar já que pode abranger vários modelos nutricionais numa restrição temporal. Nada nos diz acerca do que comer, mas apenas restringe a janela alimentar a um período variável de acordo com o modelo adoptado. E aqui temos o primeiro problema na avaliação científica da evidência. Existem vários modelos de jejum que não podem ser comparados. O resultado com um não implica que será o mesmo com outro.
Estes são os 4 modelos mais comuns de jejum intermitente:
Método 16/8: provavelmente o mais comum e aplicado, que pressupõe 16 horas de jejum e refeições numa janela de 8 horas. Por exemplo, comer entre as 12:00 e as 20:00, jejuando durante o resto do tempo. Ou entre as 8 da manhã e as 4 da tarde;
Eat stop eat: uma ou duas vezes por semana, jejuar entre o jantar de um dia e o jantar do dia seguinte;
Método 5:2: em dois dias da semana fazer um jejum parcial, em que apenas se ingerem cerca de 25% das calorias habituais (500-600 kcal);
Warrior Diet: o período de alimentação fica restrito às últimas 4 horas do nosso dia. Este já sem expressão em contexto científico, mas bastante veiculado nas redes sociais.
Muitos estudos têm sido conduzidos nos últimos anos sobre o impacto do jejum intermitente, limitados pela dificuldade em desenhar intervenções em humanos suficientemente longas e com adesão para que os potenciais efeitos de prevenção a longo prazo se manifestem. Estes estudos são praticamente impossíveis de realizar, o que limita em muito a robustez científica dos dados disponíveis quando se pretende o transfere para o Homem. Estamos limitados a evidência frágil.
São muitas as alegações referentes ao impacto positivo do jejum, entre as quais:
1. Perda de peso, assunto que iremos abordar em detalhe e em que a evidência não aponta para um efeito superior do IF;
2. Aumento da sensibilidade à insulina, que depende na verdade da duração do período de jejum;
3. Efeito anti-inflamatório;
4. Redução do stress oxidativo, pelo efeito anti-inflamatório alegado e menor consumo de oxigénio que se associa à redução adaptativa da taxa metabólica;
5. Aumento da longevidade, área em que estamos limitados a estudos em animais e leveduras, mas que motivou muito do interesse associado ao jejum intermitente. Esse aumento da esperança de vida estaria associado a maior actividade das Sirtuinas e capacidade de reparar erros e quebras no DNA, bem como à menor produção de radicais livres.
Um outro mecanismo induzido pelo IF e alvo de grande interesse científico é a autofagia. Este processo celular é conhecido há mais de 50 anos, tendo sido verificado primeiramente em estudos com leveduras sujeitas a privação nutricional. De uma forma muito simplista poderíamos definir a autofagia como a entrega de material celular heterogéneo aos lisossomas para que seja digerido e reciclado. Usado depois como matéria-prima e suporte nutricional para processos vitais. Como se a célula se “comesse” a ela própria, mas digerindo selectivamente as estruturas disfuncionais e potencialmente deletérias. Os organelos em senescência, como as mitocôndrias por exemplo, ou proteínas disfuncionais. Essa capacidade de selecionar estruturas decadentes para autofagia parece existir, embora o mecanismo não esteja ainda clarificado. De uma forma resumida, em resposta a stress celular indiferenciado são recrutadas proteínas “autophagy-related”, também designadas de ATGs, que vão levar à formação de uma vesícula que isola uma porção do citoplasma e suas estruturas e proteínas, o autofagossoma. Esse autofagossoma vai fundir-se com um lisossoma, estrutura que contém uma variedade de enzimas líticas. As estruturas inclusas na vesícula vão ser então digeridas, e esse material poderá ser reciclado para a síntese de novas.
O processo de autofagia é induzido por stress celular que resulta da privação nutricional, carência energética onde o jejum se enquadra, mas também hipoxia, infecção ou privação de factores de crescimento. Privação essa que também ocorre durante o jejum prolongado, já que a exposição à insulina tende a baixar, assim como a actividade do mTOR. O mTOR bloqueia o processo de autofagia por inibição da AMPK. Esta AMPK é uma espécie de maestro do metabolismo energético, activada em situações de um status energético celular negativo, e uma das suas ações é precisamente promover a autofagia e reciclagem de material celular. A AMPK fosforila e activa proteínas iniciadoras do processo autofágico e promove a formação do autofagossoma.
A autofagia tem como percebemos uma função protectora já que essa reciclagem é selectiva. Ocorre primeiramente nas estruturas senescentes e macromoléculas disfuncionais. Acredita-se que desempenhe também um papel oncoprotector, mas apenas antes da iniciação do processo neoplásico. Na verdade, as células tumorais têm uma elevada actividade autofágica, particularmente evidente em tumores agressivos. Reciclam o seu próprio material para promover a progressão tumoral e escapar aos processos citotóxicos de defesa no organismo. Falamos aqui em prevenção e não em tratamento do cancro, aspecto que nunca é demais sublinhar. Não existe evidência de que o jejum ou práticas que alegadamente promovam a autofagia possam ser benéficas em doentes oncológicos, podendo até acelerar a caquexia característica da doença e relacionada com um mau prognóstico. É no entanto verdade que segundo alguns trabalhos o jejum poderá ajudar a reduzir o efeito nefasto da quimioterapia em células saudáveis, já que as células tumorais não se adaptam ao processo. Têm na maioria dos casos expressão constitutiva do mTOR. Mas mais uma vez reforço que se tratam de dados circunstanciais e de evidência ainda ténue para que possamos indiciar o jejum intermitente como prática terapêutica co-adjuvante em doentes oncológicos. A meu ver o prejuízo poderá ser superior ao potencial benefício.
Existe também alguma evidência em modelo animal de um efeito neuroprotector através da reciclagem de proteínas mal-conformadas e disfuncionais que estão da base de doenças neurodegenerativas como o Alzheimer, Parkinson, ALS, entre outras. Neste campo faltam-nos estudos clínicos em humanos que possam atestar esses benefícios, ou estabelecer de forma inequívoca que estes se devem ao jejum e não à restrição energética inerente ao processo.
Em relação ao aumento da longevidade, este estará obviamente associado à renovação das estruturas celulares e organelos como as mitocôndrias, mas não só. Como vimos, a AMPK é um factor determinante no processo de autofagia mas também as Sirtuinas, proteínas envolvidas na reparação do DNA, parecem envolvidas no processo de autofagia e nos potenciais benefícios do jejum na longevidade por reparação dos danos acumulados no DNA ao longo dos ciclos de replicação.
Na verdade, as Sirtuinas são também reguladas pela AMPK de forma directa e indirecta, pela disponibilidade de NAD+ que aumenta em resposta ao stress e privação energética. O NAD+ activa as Sirtuinas e é necessário para o seu funcionamento. Quando há um dano ao material genético elas são recrutadas para o reparar, voltando depois para o seu local de origem prontas para serem novamente mobilizadas. O jejum parece estimular este processo e actividade, facilitando assim a reparação do DNA e minoração dos danos acumulados.
Mas a analise à evidencia nesta área coloca-nos um entrave básico que qualquer pessoa com boa cultura científica consegue entender. A grande maioria dos estudos são em modelo animal ou cultura de células. Não podem ser directamente extrapolados para o homem sem os devidos estudos clínicos. As diferenças são muitas no que respeita à fisiologia, mesmo e comparação a mamíferos como os ratinhos. Uma taxa metabólica consideravelmente mais rápida no caso dos roedores, 10 a 12 vezes, um ciclo de vida bem mais curto, ou ao próprio stress a que os animais estão sujeitos em ambiente de laboratório. Nenhum animal está no seu estado fisiológico normal numa jaula, mas isto é um problema fundamental da ciência que tem sido muito discutido entre os investigadores. A própria alimentação muitas vezes não é ideal, e falo da qualidade das rações e horários de alimentação. Um problema que o próprio Matt Madson aponta, investigador de renome nas doenças neurodegenerativas e presidente do Instituto da Longevidade. Os ratinhos têm um ritmo circadiano inverso ao nosso. São notívagos. Qualquer resultado deve ser ajustado ao ritmo cronobiológico e não ao horário. Muitas vezes os períodos de alimentação não coincidem com o seu ritmo circadiano por conveniência da logística laboratorial. E isso é suficiente para alterar por completo o outcome. Por exemplo, os benefícios do IF apenas se parecem manifestar quando a alimentação é síncrona com o cronotipo. Quando os animais são alimentados à noite.
Existem de facto estudos em ratinhos, Saccharomyces cerevisiae e nemátodes a sugerir um efeito positivo do jejum intermitente na longevidade. Mas temos de compreender que esses resultados não devem ser extrapolados de forma directa para o homem. Ganhar mais uma semana de vida num ratinho é significativo, mas considerando a taxa metabólica e longevidade da espécie poderíamos estar a falar em não mais do que uns dias em pessoas. A verdade é que os estudos que seriam necessários para comprovar um efeito do jejum na longevidade são impossíveis de realizar. A duração é proibitiva. E estudos retrospectivos também não são possíveis porque não existe uma experiência longa o suficiente com este modelo alimentar. Populações não-ocidentalizadas que se diz aproximarem de um modelo alimentar deste tipo têm também muitos outros comportamentos que podem ser responsáveis pela sua maior longevidade. E também a selecção genética já que são populações muito restritas em zonas especificas do globo. O que parece ser comum entre elas é o facto de comerem pouco, e isso poderá ser um factor suficiente para os benefícios que têm sido associados ao jejum. A restrição calórica. Que teoricamente induz adaptações semelhantes às que mencionámos, com redução do consumo de oxigénio e produção de radicais livres, danos ao DNA, promovendo a autofagia e renovação celular. E esta é uma pergunta que ainda carece resposta. É o jejum ou a restrição energética? O jejum não será só uma forma mais fácil de atingir esse balanço negativo? E o exercício? Os benefícios que se associam ao jejum intermitente também são reconhecidos ao exercício físico. Não parece que o IF seja a única forma de os atingir, e muito menos o segredo para a melhoria da composição corporal.
Composição corporal
Modelos intermitentes de jejum não são novos como estratégia de perda de peso. O primeiro relato clínico da sua utilização que tenho conhecimento remonta a 1966 para tratamento da obesidade. Um homem com 200 kg sujeito a períodos de 10 dias de jejum intercalados com 10 dias de restrição calórica, perdendo cerca de 100 kg ao fim de 400 dias. No entanto, este estudo nada nos diz sobre a eficácia do jejum intermitente pois não o compara com outro qualquer modelo. Em concreto, com a típica restrição calórica continua já que o deficit energético terá sido o único motivo pelo qual a perda foi conseguida.
Estudos bem mais recentes que tentam responder a essa dúvida, se o IF é mais eficaz que a restrição energética contínua, não mostram qualquer diferença entre protocolos desde que o aporte calórico total seja o mesmo. Também não se encontram diferenças entre parâmetros específicos de composição corporal, como a perda de massa gorda ou massa magra. E mesmo em indicadores clínicos, metabólicos e de perfil lipídico, essa diferença parece ser mínima ou inexistente. Qualquer melhoria está associada à perda de peso por si, e não ao modelo alimentar adoptado. Em IF concomitante com treino resistido, nem nos níveis de massa magra parece existir diferença quando o aporte calórico é idêntico ao grupo com restrição calórica contínua.
Várias meta-análises e revisões sistemáticas foram já realizadas sobre o efeito do jejum intermitente na perda de peso, todas com conclusão idêntica. Parece ser um método igualmente viável, sem efeitos secundários, mas não melhor ou pior do que a restrição calórica contínua. Portanto, a evidência parece clara. Não existe diferença entre o jejum intermitente e restrição contínua quando o aporte energético é o mesmo. Trata-se de uma estratégia igualmente viável, e só mais favorável quando assegura maior adesão.
O IF não parece implicar um aumento do apetite comparativamente a modelos contínuos, levando a que as pessoas comam mais na janela alimentar permitida. Nem foi verificado um impacto significativo a nível de hormonas orexígenas como a grelina. Na verdade, o jejum intermitente pode sacrificar menos os níveis de leptina comparativamente à restrição contínua. Como sabemos a leptina é uma hormona implicada na regulação da homeostrase energética, e a sua quebra está associada a ligeira redução do gasto calórico e aumento do apetite. A cetose induzida pelo prolongamento do jejum pode também explicar aumentos de saciedade relatados, quer via estimulação da colecistoquinina quer pelos próprios corpos cetónicos que se pensa exercerem um efeito anorexígeno a nível central.
Estudos que sugerem uma vantagem do jejum intermitente na perda de peso devem ser vistos em maior detalhe. Isto porque se quantificarmos o aporte calórico semanal vemos claramente que os grupos em jejum intermitente tendem a um aporte calórico significativamente inferior ao grupo controlo. Até cerca de 4000 kcal a menos por semana. É então natural que percam mais peso. A eficácia maior eficácia do jejum intermitente apenas se verifica quando um deficit energético mais robusto é estabelecido. O que verificamos por vezes é uma maior facilidade em aderir a esse deficit quando restringimos a janela alimentar ao invés de enfatizar a restrição calórica numa janela alargada. E se assim for, poderá ser uma estratégia perfeitamente viável. Gabel et al. (2018) mostra precisamente isso em modelo 16:8, com perda de peso associada a uma redução voluntária do aporte energético em 300 kcal por dia. A redução da janela alimentar pode de facto associar-se a uma maior redução calórica espontânea que se traduz em perda de peso. É um modelo de dieta simplificado, com instruções fáceis de entender que não passam por um corte consciente nas calorias ingeridas. O que talvez possa favorecer a adesão em certos segmentos.
Resistência à insulina e tolerância aos hidratos de carbono
Um aspecto a considerar para além do peso e composição corporal é a própria saúde metabólica e sensibilidade à insulina. Aspectos intimamente associados como sabemos. Existem alguns estudos a sugerir que o jejum intermitente pode beneficiar a acção da insulina. Já em 1985, Hallberg et al. verificaram em modelo 20:4 a cada 2 dias durante 15 dias um aumento da sensibilidade à insulina, traduzido numa mais eficaz inibição da lipólise, e aumento da tolerância aos hidratos de carbono com taxas de captação mais favoráveis.
No entanto, esse efeito parece depender essencialmente do tempo do jejum. Jejuns mais longos, superiores a 24-36 horas, poderão exercer um efeito negativo na sensibilidade à insulina e tolerância aos hidratos de carbono. O que aliás tem toda a plausibilidade biológica numa adaptação à utilização de gordura como fonte de energia predominante. Não só os ácidos gordos livres em quantidade crescente irão estimular a PKC-d, uma cinase de serina/treonina que dessensibiliza o receptor à acção da insulina, como haverá uma redução adaptativa da actividade e expressão da piruvato desidrogenase. O fluxo glicolítico diminui, assim como a capacidade de captar glicose da circulação sanguínea.
Existem também alguns indícios de que o jejum intermitente com um padrão de ingestão matinal, entre as 8:00 e as 14:00, poderá ter um efeito mais favorável na sensibilidade à insulina e tolerância aos hidratos de carbono, comparativamente a uma janela alimentar de 12 horas. No entanto tratam-se de diferenças pequenas, possivelmente também associadas a discrepâncias no consumo calórico total. Isto porque essa concentração do aporte calórico de manhã parece até reduzir mais a fome ao fim do dia. Sabemos também dos estudos em animais que os benefícios do jejum parecem existir quando sincronizados com o ritmo circadiano. Nocturno nos ratinhos, mas diurno em humanos. O contrário do que a maioria das pessoas faz, concentrando por motivos de comodidade ou vontade a comida à noite. Um comportamento desalinhado com os ritmos biológicos.
Cronobiologia da nutrição
Quando falamos de jejum intermitente e seus modelos, a nossa cronobiologia não deve ser ignorada. Os ritmos circadianos intrínsecos à nossa biologia. Se limitamos a janela alimentar a um período restrito do dia, será melhor fazê-lo de manhã ou à noite? Faz diferença? Tudo aponta para que sim. Somos animais diurnos, mais activos durante o período de luz. Sabemos que a nossa sensibilidade à insulina é superior de manhã, assim como a secreção de insulina, síntese de glicogénio hepático, e a própria utilização de hidratos de carbono como substrato nos tecidos periféricos e maior. À tarde verifica-se uma maior activação do sistema nervoso simpático, e maior oxidação de ácidos gordos. No fundo somos aptos a reservar energia de manhã para que possa ser usada em períodos mais tardios. A crononutrição é uma disciplina recente que só nos últimos anos começou a produzir resultados, sugerindo que de facto o padrão alimentar ideal deverá ser mais matutino do que vespertino ou nocturno.
Podemos iniciar esta discussão com uma matéria conflituosa mesmo entre a comunidade científica. O pequeno-almoço é a refeição mais importante do dia? Devemos comer logo de manhã ao acordar? Os ensaios clínicos são tudo menos claros em associar a toma de pequeno-almoço a um benefício directo no peso. Têm falhado em demonstrar de forma perentória o benefício do pequeno-almoço para a gestão do peso corporal. Existem na verdade estudos a sugerir que saltar o pequeno-almoço pode até ser mais favorável para facilitar a redução calórica total diária. E até que, segundo a meta-análise de Sievert et al. 2019, que a introdução do pequeno-almoço em indivíduos que habitualmente não o tomam pode ter um efeito inverso no tratamento da obesidade.
Mas outros estudos têm sugerido algo que considero mais importante e que é muito menosprezado quer pelo público quer pelos profissionais. A regularidade. Os benefícios do pequeno-almoço parecem associar-se a um padrão regular da refeição, beneficiando tanto os que o tomam sempre como os que nunca o fazem. Um padrão irregular parece estar sim associado a pior saúde metabólica e ganho de peso.
O nosso organismo gosta de rotinas. De previsibilidade para a antecipação de respostas. E manter um padrão alimentar regular, na frequência e horários aproximados das refeições, é um dos aspectos que facilita esse condicionamento metabólico à coerência na entrada de energia. Farshchi et al. 2005 estudou as diferenças na resposta a um padrão regular, com 6 refeições diárias à mesma hora, e irregular, com variação entre 3 a 9 refeições, durante 14 dias. O padrão regular levou a uma menor ingestão calórica média espontânea, embora ligeira (-80 kcal/dia). Além disso, verificou-se um aumento superior do dispêndio energético após refeição, termogénese induzida por dieta, e menor exposição à insulina no período pós-prandial. Estes dados sugerem que de facto somos animais de rotinas. E que isso condiciona positivamente o nosso metabolismo como sinal ambiental de segurança alimentar. Por outras palavras, que não estamos num contexto de carência e que o alimento não nos irá faltar. Não é necessário “poupar” e reservar. Óbvio que não estamos a falar de uma cronometragem ao minuto, mas sim de um padrão em “janelas alimentares” que devemos manter consistentes. As rotinas podem mexer com o cérebro de muita gente, mas a verdade é que do ponto de vista fisiológico funcionamos melhor com elas. Um aspecto que considero de extrema importância para a optimização da composição corporal e saúde em geral.
Alguns trabalhos mostram um aumento do consumo calórico nas refeições subsequentes, almoço e jantar, quando se suprime o pequeno-almoço. Aumento esse que poderá estar associado a uma pior variação da glicemia após essas mesmas refeições. Com uma amplitude de variação superior, especialmente após o almoço que pode condicionar o apetite no período posterior. Os glucoreceptores centrais no hipotálamo e tronco encefálico monitorizam a amplitude de variação da glicemia, iniciando uma resposta quando essa variação é anormalmente elevada. Não respondem a níveis absolutos mas sim a amplitudes, percecionando a descida de um nível superior como uma quebra de energia. Em resposta iniciam processos de restabelecimento energético que, entre outros, passam pelo aumento do apetite.
Um assunto ligeiramente diferente da toma ou não do pequeno-almoço é a repartição do aporte calórico ao longo do dia. Será indiferente se o aporte total for mantido? Lombardo et al. 2014 abordou essa questão, avaliando dois grupos com diferente distribuição do mesmo aporte calórico total durante 3 meses. Com um grupo a ingerir 70% da energia até ao almoço, e o outro 80% entre o almoço e o jantar. Os resultados revelaram uma maior perda de peso no grupo que concentrou mais energia na primeira metade do dia. A verdade é que não se sabe ao certo o porquê desse fenómeno. Tratando-se de um estudo em ambulatório, em que os planos nutricionais são definidos mas cuja adesão rigorosa fica à responsabilidade dos intervenientes, é possível que o grupo com maior aporte matutino tenha reduzido espontaneamente o valor calórico total. O reporte é um método muito falível de avaliar a dieta de um indivíduo. Outra hipótese, como sugerido por Ritcher et al. 2020, de manhã verifica-se uma maior termogénese induzida por dieta, ou efeito térmico dos alimentos, podendo explicar a diferença ligeira que Lombardo encontrou. Um maior dispêndio em resposta à concentração calórica no período da manhã. Ritcher verificou também uma maior redução do apetite e níveis mais favoráveis de glicemia pós-prandial. Indicadores de uma provável maior facilidade em manter o consumo calórico reduzido, e desta forma favorecer a perda de peso. Um aspecto já antes sugerido por Jakubowicz et al. 2013 em mulheres obesas ou com excesso de peso. Um impacto mais favorável da concentração calórica pela manhã, que se traduz positivamente em indicadores hormonais e percepção subjectiva de saciedade.
Sabemos que a insulina e a tolerância aos hidratos de carbono revelam um padrão circadiano. A secreção de insulina é maior de manhã em comparação com refeições idênticas mais tardias, e a tolerância aos hidratos de carbono é maior também no período da manhã. Não apenas pelos níveis mais elevados de insulina, mas também pela maior capacidade hepática em sintetizar o glicogénio gasto durante o jejum nocturno. Além disso a própria expressão de genes como a adiponectina, que influencia positivamente a sensibilidade à insulina, sofre uma expressão diferencial ao longo do dia, superior de manhã. A dessincronização deste padrão biológico com a alimentação poderá então, de acordo com estudos como o anterior, levar a uma menor tolerância aos hidratos de carbono. A resposta não é igual se 50 g forem ingeridas de manhã, ao fim da tarde, ou já de noite.
Os nossos biorritmos são condicionados pelos ciclos luz/escuro. O núcleo supraquiasmático no hipotálamo integra os sinais externos, a captação de fotões, e regula uma autêntica orquestra de hormonas e expressão génica. Mas para além deste relógio biológico primário, central, temos ainda outros relógios periféricos secundários que se sincronizam por estímulos variados como o horário das refeições, exercício, entre outros. E se a nossa fisiologia é regulada de forma circadiana, é natural que as respostas às refeições sejam diferenciais ao longo do dia, embora elas mesmas possam em certa medida condicionar esses “relógios”. De uma forma geral, já vimos que a secreção de insulina é superior de manhã e menor à tarde/noite, por inibição associada à maior actividade simpática, níveis mais altos de leptina, e de melatonina já no período de escuridão. Por sua vez, os níveis de grelina são superiores de manhã, assim como a taxa de esvaziamento gástrico. Os alimentos saem mais rápido do estomago. A taxa de síntese de glicogénio hepático é também superior de manhã, bem como a expressão dos transportadores de glicose GLUT-2, de forma a repor o que foi mobilizado durante a noite. E níveis baixos de glicogénio hepático associam-se a maior apetite, sinalizado ao cérebro através do nervo vago da necessidade de energia. De manhã a capacidade oxidativa de ácidos gordos no músculo é menor, aumentando substancialmente a partir de meio da tarde, assim como a própria temperatura corporal que sugere uma maior actividade metabólica. Relativamente ao tecido adiposo, verificamos uma menor produção de leptina de manhã, mais adiponectina, e um aumento da expressão do PPAR-γ, um factor de transcrição que promove a re-esterificação lipídica. Condições que favorecem a acumulação de energia no período matinal, sendo mobilizada em momentos mais tardios para fornecer energia aos tecidos sob a forma de ácidos gordos, em particular o músculo que os oxida eficazmente.
A taxa metabolica tende a ser mais elevada a meio da tarde, caíndo durante a noite. Mas mais relevante, a oxidação de acidos gordos é superior à tarde, atingindo o seu pico em termos absolutos quando a taxa metabólica é máxima. Por seu lado, de manhã a oxidação de ácidos gordos é menor e inibida pela primeira refeição do dia. O inverso verifica-se para os hidratos de carbono, com uma taxa de oxidação superior de manhã e menor ao fim do dia. Altura em que a tolerância aos hidratos de carbono é menor, bem como a sensibilidade à insulina. A alternência de substratos após uma refeição é menos eficiente e parcial.
Existem de facto indícios de uma menor perda de peso ou ganho mais fácil em pessoas com um padrão alimentar nocturno. Padrão esse que estará associado a um aumento do aporte calórico total, com mais ocasiões de ingestão. Não deve ser ignorado que um cronotipo nocturno se associa a piores hábitos alimentares em geral, e a um estilo de vida menos saudável. O que por si só pode explicar o maior risco de obesidade e dificuldade no emagrecimento, independentemente do padrão alimentar horário.
No limite, se avaliarmos dois padrões alimentares paralelos, um diurno e outro nocturno, as respostas a refeições idênticas são bem distintas nas mesmas pessoas. A tolerância aos hidratos de carbono é menor em resposta às refeições nocturnas, com exposição a níveis mais elevados de glicose, a insulina aumenta menos, e os níveis de triglicéridos muito superiores com o padrão alimentar nocturno. Isto pela remoção menos eficiente dos quilomicra alimentares. Comer à noite não parece de facto algo que estejamos “desenhados” para fazer.
Outras implicações hormonais
Uma das alegações anedóticas que por vezes encontramos nas redes sociais refere-se a um aumento da testosterona com jejum intermitente. Uma afirmação completamente sem sentido e que vai contra toda a evidência que existe para um efeito inverso. Se o IF afecta a testosterona, é num sentido negativo. Moro et al. (2016) mostra-nos uma redução em 21% após 8 semanas em modelo 16:8 comparativamente a alimentação não intermitente, mesmo sem restrição calórica estabelecida. E já estudos antecedentes com Muçulmanos no Ramadão revelam uma diminuição dos níveis séricos de testosterona, com implicações a nível da libido. É verdade também que o mês do Ramadão é marcado por muitas alterações a nível do estilo de vida e rotinas que por si poderiam explicar estes resultados. Mas não existe evidência científica de um aumento da testosterona em jejum intermitente, antes pelo contrário, nem isso faria sentido à luz da biológia. O IF simula um ambiente de stress, e esse será o motivo para as adaptações horméticas positivas. Mas em stress, seja carência energética ou outro, a reprodução fica em segundo plano quando a prioridade passa por assegurar a sobrevivência.
Sabe-se que o IF aumenta o risco de amenorreia nas mulheres, em particular de amenorreia hipotalâmica funcional. Marcada por uma redução da produção de gonadotropinas a nível hipofisário, LH e FSH, e insuficiente estimulação dos ovários na produção de estradiol. Estas disrupções do ciclo menstrual são muitas vezes mascaradas pela administração de anticoncepcionais orais, e na maior parte dos casos facilmente reversíveis com a mudança do padrão alimentar.
Não é só a testosterona e estradiol que sofrem uma redução com o prolongamento do tempo de jejum. Como seria de esperar, também as hormonas tiroideias parecem baixar embora este impacto seja meramente adaptativo e sem expressão clínica. Associa-se à modesta redução do dispêndio basal que se verificara quando nos submetemos a um jejum prolongado, mas transitório. Normalizando com o retorno ao padrão alimentar isoenergético. Alguns autores levantam também a hipótese dessa redução nos níveis de T3 estar associada a maior longevidade. Populações centenárias apresentam níveis médios de T3 mais baixos do que os normalizados para as ocidentalizadas. Isto como reflexo de um metabolismo mais lento, menor consumo de oxigénio, e menos radicais livres produzidos. Na verdade, é uma lei da Natureza. Quanto maior a taxa metabólica, menor a longevidade.
Efeitos secundários
Apesar do IF ser uma prática segura, temos relatos de casos pontuais de problemas associados ao jejum prolongado. A cetoacidose foi já relatada numa mulher não-diabética que se submeteu voluntariamente a 48 horas de jejum. Apesar de se tratar certamente de um fenómeno raro em indivíduos saudáveis, é algo a ter em consideração nos modelos mais agressivos. O tempo de jejum periódico não deverá exceder as 16-24 horas, janela em que encontramos os estudos que não mostram efeitos nefastos e onde os benefícios já deverão aparecer. De uma forma geral, o IF é seguro e bem aceite entre os praticantes.
Conclusão
O jejum intermitente é um modelo alimentar muito em voga e com bastante aceitação entre o público, embora a ciência nesta área esteja ainda na sua infância. Os resultados dos estudos não são claros, ou limitados a modelos experimentais sem transfere directo para o Homem. O IF tem também falhado a demonstrar superioridade clara relativamente à restrição energética contínua na melhoria de parâmetros metabólicos ou composição corporal, e a verdade é que mesmo os benefícios assumidos a nível da longevidade e saúde poderiam ser atribuídos a um balanço energético negativo crónico.
É também verdade que se trata de um modelo alimentar sem implicações negativas nos modelos mais comuns, e que em alguns casos poderá favorecer a adesão ao protocolo de restrição calórica. Assim sendo, é mais uma ferramenta no arsenal contra o excesso de peso e em prol das melhorias metabólicas que advêm dessa perda. Mas existe evidência de que o padrão de IF mais comum entre o público, com restrição da janela alimentar a períodos mais tardios, pode não ser o mais favorável de acordo com o nosso ritmo circadiano. O ditado popular “pequeno-almoço de rei, almoço de príncipe e jantar de pobre”, ou sem jantar nenhum, parece fazer o seu sentido e enquadrar-se num modelo mais favorável de jejum intermitente alinhado com a nossa cronobiologia.
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