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Os alimentos com "super-poderes"

Uma das maiores tendências do mercado são hoje os super-alimentos, ou superfoods. Tratam-se de alimentos aos quais são atribuídas algum tipo de características especiais quase miraculosas, seja capacidade antioxidante, riqueza nutricional única, propriedades estimulantes, ergogénicas, afrodisíacas, entre outras. Mas o que têm estes alimentos de tão especial, sendo grande parte deles do mais exótico imaginável, e que muito dificilmente terão feito parte da nossa alimentação noutra época que não esta em que a disponibilidade regional deixou de ser uma barreira intransponível? Em que a informação e desinformação circulam a uma velocidade alucinante e perigosa quando, apesar da evolução da ciência, a necessidade de crença continua na essência da nossa espécie? Uma reflexão que pretendo fazer aqui convosco.


A alimentação é um fenómeno muito íntimo ao Ser Humano, que não só nutre o corpo mas também o espírito. E é um facto que sempre esteve ligada à espiritualidade, transcendência, e religião desde que nos conhecemos como espécie. Temos a maçã que Eva deu a Adão, o fruto proibido. A Ambrosia dos Deuses Gregos, um doce com o poder da cura e imortalidade. Também na Grécia se comiam os testículos dos animais para assimilar a sua virilidade. Na bíblia encontramos referência a alimentos sagrados e oferendas de Deus para a humanidade. Após o êxodo do Egipto, Deus terá salvado os seus súbditos da fome no deserto com uma espécie de “panquecas com mel”, referidas como man hu, palavra que provavelmente terá dado mais tarde origem a “mana”. Um conceito que os adeptos de RPGs conhecem de certo, recordando um passado longínquo em que jogava Magic The Gathering. E na mesma linha, temos a lembas dos elfos do imaginário de Tolkien. O alimento foi desde sempre fonte de uma força mística e muitas vezes sobre-humana.


Podemos definir um super-alimento de duas formas. Um alimento que nos fornece tudo aquilo que precisamos para viver, todos os nutrientes essenciais, ou que possui propriedades terapêuticas ou de aumento de performance, seja de que tipo for. No primeiro grupo temos algo como o man hu de Moisés, mas que dificilmente encontramos par na Natureza. Um que conjugue as dezenas de nutrientes necessários à vida. Não existem “alimentos perfeitos”, mas uns aproximam-se mais do que outros. No outro grupo incluímos uma panóplia de alimentos e condimentos que contêm algum composto funcional que, não sendo necessariamente essencial, pode actuar como terapêutico ou ergogénico (melhoria de função). Por exemplo, a canela na melhoria da sensibilidade à insulina [LINK], ou a Maca com alegados efeitos estimulantes e afrodisíacos.

Existem evidências científicas robustas para aplicações específicas de determinados alimentos, ou mais especificamente, compostos neles presentes. Mencionei a canela mas poderia ser o caso do alho, açafrão, gengibre, e mais uma mão cheia de alimentos funcionais com algum suporte em ensaios clínicos. Não com efeitos drásticos, como seria de esperar aliás para um alimento, mas mesmo assim potencialmente benéficos em determinados contextos, e em particular quando os compostos são isolados e administrados como suplemento. A dose terapêutica muitas vezes não é atingível com o alimento no seu estado Natural.


Mas depois temos ainda os “alimentos mágicos”, tais Unicórnios Nutricionais veiculados não como terapêuticos, mas como uma espécie de seguro de saúde geral. Ou curam tudo, ou nos protegem de todos os males. Estudemos o caso do Açaí por exemplo, uma fruta nativa da América do Sul mas que nos últimos anos tem visto o seu consumo disparar no Mundo Moderno pelos alegados benefícios que proporciona. O Açaí reune tudo o que é preciso para se tornar um super-alimento. O acesso é restrito e não faz parte da nossa alimentação convencional, pode ser comercializado em pó, não perecível, e apresenta evidência, não importa de que tipo, de um efeito antioxidante que parece ser suficiente para o enquadrar no grupo dos alimentos milagrosos.

Os sistemas de Marketing Multi-Nível piscam o olho, como foi o caso da MonaVie, um dos mais bem sucedidos até hoje. Os seus sumos mágicos à base de Açaí e outros milagres engarrafados são um sucesso. Não pelos benefícios que demonstra mas pelo negócio que suporta. Negócio esse que explora a emoção e a crença Humana de que certos alimentos podem ter propriedades especiais. Podia muito bem ser alpista, que segundo descobri enquanto escrevia este artigo parece também ser um super-alimento [LINK].


Na verdade a história dos super-alimentos, e também “super-suplementos” naturais, está muito ligada aos negócios multi-nível. O primeiro multivitamínico foi precisamente comercializado por venda directa em 1945 pela Nutrilite do Dr. Carl Rehnborg, a primeira companhia do género, mais tarde adquirida pelo colosso do multi-nível, a Amway. Mas no meio dos Ferraris e Lamborghinis que encontramos em algumas convenções que mais parecem encontros da IURD, está uma taxa de perdas e desistências perto de 99%. Embora no inicio todos acreditem ser aquele 1% que realmente ganha dinheiro, porque no fundo, tudo depende de nós e do nosso trabalho… Engano. Depende da nossa capacidade em convencer os outros de que também podem ser esses 1%. Não quero com isto dizer que todos os negócios de venda directa e multi-nível sejam necessariamente fraudulentos e que a abordagem seja em má fé, mas fujo deles como o diabo da cruz. Preconceito meu. Mas até existem estudos e tal…


Vamos aos estudos, com a MonaVie como exemplo. Um trabalho publicado em 2008 mostra um aumento dos níveis de antioxidantes séricos e redução da peroxidação lipídica após ingestão da bebida [LINK], comparativamente ao placebo. Flocos de batata! Compararam o efeito do Açaí com flocos de batata para o seu efeito antioxidante… Foi isso mesmo que fizeram. E instruíram os participantes a evitar o consumo de complexos vitamínicos, frutas, vegetais, portanto tudo o que de alguma forma pode ser comparado ao Açaí. Não só os indicadores medidos são minor endpoints, sem relevo no tratamento ou prevenção de doenças, como é descabido comparar o Açaí a flocos de batata. Interessa sim comparar a outros alimentos ricos em antioxidantes que fazem parte da nossa dieta convencional. A uma simples maçã por exemplo. Mesmo que menor, a combinação de vários não deverá surtir efeito diferente.


Mas o mercado de super-alimentos está longe de se limitar ao negócio multi-nível e é hoje um segmento em grande crescimento. Quanto mais exótico melhor, e imprescindível uma forma não perecível de comercialização. Uns brócolos como superfood não é nada fashion mesmo com o seu teor em glicosinolatos e sulforafano. Mas vendem-se na praça. Não tem aquela mística. Arónia ninguém sabia o que era, mas de repente toda a gente precisa. Com o Açaí foi a mesma coisa, mas pelo menos sabe bem. E poucas serão as áreas de negócio onde tão fácil é criar uma necessidade e vender a solução.


Todos os alimentos são de alguma forma super-alimentos, ou pelo menos aqueles que são dignos desse nome. Comida real. Uns poderemos chamar de alimentos funcionais pois os seus compostos bioactivos actuam em vias metabólicas específicas e podem ter interesse terapêutico ou preventivo. Mas embora nos possa fazer sentir especiais, não é por comer um Açaí ou polvilhar os cereais Fitness da manhã com sementes de pirlim pim pim que vou ser mais saudável, ou salvo da porcaria que ando a fazer no resto do tempo. Lamento, mas não vai correr bem. Essa não deveria ser sequer a questão para a grande maioria das pessoas, mesmo as que procuram esse tipo de absolvição. Muitas vezes a simplicidade é a verdadeira sofisticação. Não navegue ao sabor das tendências.


“O conhecimento é o alimento da alma” (Platão). A verdadeira e única “superfood”

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