Que a gordura não se transforma em músculo é ponto assente. Um fisiologista suicida-se cada vez que o dizem, como se a transmutação de um tecido noutro totalmente distinto fosse possível. A gordura não se transforma em músculo, como um calhau não se transforma em ouro. Mas é possível ganhar massa magra ao mesmo tempo que se perde gordura? Sim isso é possível, e já foi por diversas vezes demonstrado. Vemos isso em base quase diária, e são muitos os estudos que o demonstram claramente. Aliando treino resistido, com carga, a uma dieta hiperproteica mesmo que hipoenergética pode permitir o ganho de massa magra sim, em certas condições.
A hipertrofia é um processo anabólico, e como tal necessita de um input de energia. Teoricamente poderíamos conjecturar que em deficit calórico essa energia necessária não estaria disponível, e que os processos anabólicos como a síntese proteica seriam inibidos pela activação da AMPK, uma enzima que bloqueia a actividade do mTOR. Um outro factor celular responsável pela activação da síntese proteica na célula. Mas em biologia nem tudo é preto ou branco, e é no cinzento que a realidade se situa por norma. Nem o mTOR é o único factor que promove processos de síntese proteica.
Em primeiro lugar, a energia necessária para a síntese proteica é pouca. Falamos de cerca de 2,2 kcal por g de proteína sintetizada. Se o músculo é ~20% proteína, e de água tem ~73%, para aumentar 1 kg de massa magra muscular necessitamos apenas de 440 kcal mais a energia potencial reservada no tecido (~1800 kcal). Se esse aumento ocorre num mês, falamos num dispêndio acrescido em apenas ~75 kcal por dia. O músculo gasta uma quantidade relativamente pequena de energia para poder crescer, e na verdade a maior parte do seu volume é apenas água.
Para que a síntese proteica ocorra num determinado músculo não necessitamos de um status energético positivo global, mas apenas que essas condições estejam reunidas naquela fibra em particular. O exercício aumenta a alocação de energia para os músculos exercitados, mesmo “à custa” de outros tecidos que se mantém em deficit. No período de recuperação, em repouso, a maior fatia das necessidades energéticas musculares é satisfeita por ácidos gordos que circulam em excesso. Em quantidade superior à que é necessária para produzir energia, e o músculo capta aquilo que precisa para manter a sua função, mas também facilita a adaptação ao estímulo na base da hipertrofia. Se assim não fosse era impossível recuperar de um treino em deficit calórico. Essa recuperação pressupõe síntese proteica para reparação de estruturas danificadas, que não ocorreria se as vias biossintéticas estivessem totalmente bloqueadas. Mais uma vez, nada é apenas preto ou branco. A síntese proteica não está on ou off, mas ocorre num gradiente.
É reconhecido que a hipertrofia ocorre de forma mais acelerada nas fases iniciais de adaptação a um estímulo. Assim, indivíduos pouco experimentados com trabalho resistido terão sempre vantagem e ganham massa magra a uma taxa superior comparativamente a atletas experientes. E é verdade que a grande maioria dos estudos são com indivíduos pouco treinados ou destreinados, revelando ganhos que não podem ser extrapolados para atletas em fases avançadas do treino. Nestes o processo será sempre mais lento, com ganhos de massa magra residuais em deficit calórico. Na verdade, até em excedente os ganhos de massa magra são lentos neste grupo e resultado de muito esforço.
Um outro aspecto que devemos salientar, e que explica também os ganhos robustos em iniciados, é o facto do músculo ser constituído em 3/4 por água. E que uma das adaptações primárias ao treino resistido é o aumento da capacidade de reserva de glicogénio. Glicogénio esse capaz de reter >3 g por água por cada grama armazenada no músculo, o que representa um aumento de volume muito significativo. E massa magra não é sinónimo de tecido contrátil de natureza proteica, mas sim tudo o que não é gordura. Incluíndo portanto a água retida no músculo que é uma componente importante do processo hipertrófico. Grande parte da massa magra ganha num indivíduo pouco experiente é efectivamente água, mesmo em deficit calórico pois a reserva de glicogénio é uma prioridade metabólica. A necessidade de uma resposta muscular rápida sustentada pelo glicogénio é de um ponto de vista evolutivo explicativo deste fenómeno. Mesmo em dieta cetogénica, praticamente isenta de hidratos de carbono, as reservas de glicogénio mantêm-se acima dos 50% à custa da neoglucogénese hepática, mesmo se tratando de uma via energeticamente desfavorável. Lembrando que o glicogénio é constituído por glicose.
Portanto sim, é possível ganhar massa magra em deficit calórico desde que o aporte proteico seja suficiente para manutenção de um balanço azotado positivo. O valor não é consensual mas para a grande maioria dos indivíduos já será possível a partir de 1,8 g/Kg. Será tanto maior quanto menor a experiência de um indivíduo com trabalho resistido, e tanto menor quanto maior o deficit calórico. Ganhos de massa magra simultâneos a perda de gordura observam-se frequentemente, e para quem trabalha na área e avalia não é certamente novidade.
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