A compulsão alimentar (“binge-eating”) foi caracterizada pela primeira vez ainda nos anos 50 por Stunkard, um proeminente investigador na área da obesidade. Mas só no início do século XXI se tornou uma entidade clínica reconhecida entre os distúrbios alimentares. Pressupõe o consumo de uma quantidade muito grande de alimento num período temporal discreto, e por norma até ao ponto de desconforto gastrointestinal e psicológico. Vem acompanhado de uma sensação de perda de controlo e culpabilização, e os episódios ocorrem por norma quando sozinho pela vergonha que provocam. Por definição clínica, os episódios têm de ocorrer pelo menos duas vezes por semana durante três meses para um diagnóstico de compulsão alimentar, embora para efeitos deste artigo não nos restringiremos à definição clínica e vamos olhar para o impulso de uma forma mais funcional.
A compulsão alimentar distingue-se da bulimia porque não existem comportamentos observáveis de compensação. Como a indução de vómito ou outros típicos da bulimia não-purgativa, como o exercício compulsivo, jejuns prolongados, entre outros. É o distúrbio alimentar com maior prevalência, particularmente entre os obesos, um grupo onde se verifica em cerca de 30% dos casos. No entanto não devemos ser precipitados na associação entre compulsão e obesidade, pois a grande maioria das pessoas que sofrem de compulsão têm um peso normal ou apenas excesso de peso.
Os episódios de compulsão ocorrem em norma por alimentos de elevada palatibilidade, ricos em gordura, açúcar ou hidratos de carbono refinados, a que estas pessoas se restringem em períodos “non-binge”, portanto mais controlados. Um aspecto de grande relevância pois a restrição parece estar associada à compulsão. O proibido é o mais apetecido como se costuma dizer, e pelo menos neste caso com razão como iremos ver.
Não se sabe ao certo quais os factores causais da compulsão alimentar, embora se reconheça uma base genética importante com vários polimorfismos associados já identificados, em particular a nível do metabolismo e acção da dopamina e serotonina. Também a ocorrência de experiências traumáticas durante a infância e adolescência, que se sabe alterar a arquitectura neuronal e que se associa a uma redução crónica do tónus serotonérgico e sensibilidade à recompensa. E o stress recorrente parece actuar no mesmo sentido. Por exemplo, ratinhos parecem começar a exibir binge eating crónico a partir de um terceiro ciclo de stress induzido. E o paralelismo parece também ocorrer com um historial de dietas restritivas e cíclicas, que do ponto de vista fisiológico se manifesta de forma idêntica ao stress neurogénico. As mulheres também parecem mais susceptíveis do que os homens, o que se deve não só a um maior diagnóstico mas também às diferenças hormonais e na arquitectura neuronal que distinguem ambos os sexos.
Caracterizando o perfil de uma pessoa que sofre de compulsão, verificamos atitudes mais impulsivas no geral, e um maior foco direcionado ao alimento. É difícil desviar a atenção da comida nessas pessoas. Tomam tendencialmente decisões de maior risco e têm dificuldade no adiamento da recompensa. Optam pela recompensa imediata em detrimento de outras mais tardias, mesmo que de maior interesse, e parecem ter uma sensibilidade alterada a essa recompensa, com limiar de gratificação mais elevado.
A fome
Podemos distinguir dois tipos de fome. A fome homeostática e a fome hedónica. Em relação à primeira, ela exerce pressão no sentido de restabelecer o status energético. Quando os níveis de glicose baixam e efectivamente necessitamos de energia. É um processo mediado por sistemas involuntários que garantem a nossa sobrevivência. Os mecanismos estão muito bem caracterizados pois o foco residiu aqui durante muito tempo, e só mais tardiamente na importância da fome mediada por prazer e recompensa, bem mais complexa. A fome hedónica. Do grego “hedone” que significa prazer. Que dribla os mecanismos homeostáticos de controlo do apetite e sobrepõe-se a eles. E são três os nutrientes que mais a satisfazem. O açúcar/doce ou hidratos de carbono quando aliados a gordura saturada, e também o sal. De uma perspectiva evolutiva seriam nutrientes muito escassos na natureza e que só pontualmente estariam disponíveis. Nas alturas em que o alimento seria abundante, e benéfico criar reservas para sustento em períodos de escassez. Momentos em que seria então positivo termos mecanismos que nos fizessem efectivamente comer mais calorias do que necessitávamos para que essas reservas fossem criadas. E o prazer é uma forma de contornar esses mecanismos de saciedade. O prazer é na verdade um mecanismo conservado e potente de motivar comportamentos essenciais à sobrevivência. Todos os animais sem excepção buscam estratégias que maximizem o prazer e a recompensa. Negar ou adiá-la contraria os processos biológicos mais viscerais e básicos. Falo de comer para viver ou sexo para reproduzir e garantir a persistência dos nossos genes. Dois comportamentos que a evolução associou ao prazer precisamente para que os procuremos intensivamente.
Entre os sistemas neuronais reguladores do apetite a sinalização nos núcleos hipotalâmicos, em particular o arcuato e paraventricular, é sem dúvida a que está melhor caracterizada. Um mecanismo homeostático orquestrado por hormonas de acção orexígena, que aumentam o apetite por estimulação de neurotransmissores orexígenos como o NPY, e por hormonas com acção central anorexígena, inibidora do apetite. E entre estas destaco a insulina e a leptina, produzida no tecido adiposo. Mecanismos que desenvolvi no meu ebook Nutrição no Emagrecimento e Optimização da Composição Corporal.
O comportamento alimentar
A regulação do apetite é muito mais complexa do que o controlo homeostático pode dar a entender, e para percebermos o fenómeno da compulsão há que entender minimamente o comportamento alimentar. Que pode ser caracterizado em quatro fases:
Iniciação: primeiro sentimos fome ou a nossa atenção centra-se no alimento. E isso pode acontecer por mecanismos que não dependem da necessidade de energia. Inputs como olhar para um alimento ou cheirá-lo podem ser suficientes para iniciar o processo que leva à refeição. E até estímulos indirectos através de memórias associativas que são acedidas num determinado momento. Por exemplo, “Estou triste. Da última vez que estive triste comi um chocolate e fiquei mais contente. Quero um chocolate agora”. Ou então, “Falhei e sou um fracassado. Tenho de me punir e vou comer até rebentar”. Claro que tudo isto de uma forma totalmente inconsciente.
Procura: vamos exercer acções motoras para o procurar e ir ao seu encontro, motivadas pelo restabelecimento do estado energético ou pela expectativa de uma recompensa quando o obtivermos.
Consumação: chegamos até ao alimento e comemos. Durante a refeição estamos constantemente a receber inputs da cavidade oral e do trato gastrointestinal que o cérebro compara com as expectativas. Se o alimento é realmente tudo o que pensávamos e esperávamos que fosse. Estas expectativas são criadas por representações associativas. Memórias que criamos e consolidamos de experiências anteriores com um alimento, e que vêm muitas vezes associadas a estados emocionais, reforço positivo ou negativo.
Terminação: por fim terminamos a refeição, o que pode ocorrer porque estamos saciados, se atingiu o limiar de gratificação, ou porque estamos desconfortavelmente atolados de comida.
Os estímulos ou inputs invocados pelo alimento podem ser classificados de várias formas. Por exemplo, de orexígenos, estimuladores do apetite, ou anorexígenos, inibidores do apetite. A dilatação do estômago inibe o apetite. Por outro lado, o sabor doce que os nossos receptores orosensoriais percepciona ao longo do tubo digestivo é um estímulo orexígeno. De feed forward, estimulando a continuação da refeição por um mecanismo associado à recompensa como iremos ver.
Mas podemos também classificar os estímulos como directos ou indirectos. Como vimos, a iniciação e procura são potenciadas e motivadas por inputs tanto directos e como indirectos. Entre os directos temos estímulos olfactivos e visuais, mas que apenas ganham significado após aprendizagem associativa. Não sabemos o que significam até experimentar e criar uma memória que será acedida das próximas vezes. E a essas memórias podem estar associadas representações de valor, estado emocional num certo momento ou a punição/recompensa. Tornam-se indirectos por este motivo, pois por si só não têm significado.
Os estímulos gustativos por sua vez têm caracter directo explícito, mas indirecto também. Os receptores sensoriais na boca e tubo digestivo enviam informação ao cérebro sobre o seu carácter nutricional, mas essa informação ganha reforço através das representações associativas e memória. Durante uma refeição estamos constantemente a receber inputs oroensoriais que sinalizam a entrada de energia, mas também comparam os atributos sentidos do alimento com os esperados. Com as tais representações indirectas que estabelecemos para aquele alimento.
Mas existem também inputs que são exclusivamente indirectos através de memórias associativas consolidadas e cujo acesso pode ser condicionado apenas pelo estado interno e emocional. Falamos por exemplo de recompensa/punição associada a certos alimentos que o nosso cérebro “acha” que se ajustam ao momento que estamos a viver. Se estamos tristes, alegres, em stress, frustrados, etc. Memórias essas que para serem acedidas não necessitam de estímulos sensoriais. E muito interessante também, o estado fisiológico condiciona o acesso a essas memórias. Por exemplo, os ratinhos atendem mais a estímulos que foram condicionados previamente ao doce, que são as memórias associativas, quando a utilização de glicose é inibida, são resistentes à insulina, ou quando estão em hipoglicemia.
O sistema de recompensa
O sistema mesolímbico é o local no cérebro onde se aprendem associações entre a recompensa e o ambiente ou estado emocional em que são encontradas. Uma aprendizagem instrumental. Associa-se ao prazer e motivação pela recompensa, e é activada por drogas, álcool, e alimentos de elevada palatibilidade. Na área tegmental ventral (VTA) temos neurónios dopaminérgicos e opióides. Neurónios esses que projectam até ao striatum, em particular até ao Núcleo Accumbens (NAc) na região ventral que é o nosso centro de recompensa. E o estudo da compulsão alimentar tem incidido muito neste sistema mesolímbico.
No que respeita à actividade opióide mesolímbica, sabemos que é muito importante no apetite. Aumenta-o pelo prazer que induz, e sabemos que está aumentada no binge eating. Os agonistas opióides estimulam o apetite, e os antagonistas como a noloxona e naltrexona inibem os comportamentos compulsivos em relação à comida. A naltrexona é na verdade umas das abordagens terapêuticas possíveis na compulsão alimentar, embora não de primeira linha.
Por seu lado, a dopamina está mais associada à motivação na busca da recompensa do que ao prazer em si, e à flexibilidade comportamental. É um dos mecanismos mais estudados na compulsão alimentar, já com alguns polimorfismos associados que reforçam o papel da genética no risco de binge eating. A ingestão de alimentos de elevada palatibilidade aumenta a dopamina, que parece aumentar mais em obesos e indivíduos que sofrem de compulsão alimentar. Mas na verdade essa dopamina é produzida essencialmente em resposta à antecipação da recompensa quando o alimento nos é apresentado ou pesamos nele, e não tanto à ingestão. O aumento precoce prevê a quantidade de alimento que é ingerida quando consumamos a refeição. Por exemplo, quanto mais dopamina produzimos ao ver um anúncio televisivo de fast-food, mais comemos quando esse alimento nos é apresentado de seguida, e mais esforço estamos dispostos a fazer para obter essa refeição. Ao ponto de sairmos de casa a meio da noite para o comprar numa loja de conveniência.
Existem vários tipos de receptores de dopamina, mas os mais representados no sistema nervoso central são os D1 e D2 que parecem expressos de uma forma diferencial na compulsão alimentar. Nota-se uma redução na densidade de D2, que são inibitórios e mais associados à flexibilidade de comportamento, e um aumento dos D1. Sabe-se que os antagonistas selectivos de D2 aumentam o binge, e os agonistas reduzem o consumo alimentar. E como os D2 são também autoreceptores, a sua activação inibe a libertação de dopamina no neurónio pré-sináptico, e talvez dai a libertação tão robusta que encontramos em casos de compulsão alimentar. Uma dieta rica em gordura e açúcar parece reduzir os D2, e a resistência à insulina deverá mediar esta redução como iremos ver. O aumento relativo dos D1 parece potenciar a motivação para a ingestão quando respondem à dopamina, receptores esses que são estimulados pelo stress. Falaremos sobre o papel do stress na compulsão, que parece ser um factor crítico para que a compulsão se manifeste. Porque a activação do sistema dopaminérgico mesolímbico é na verdade uma forma de aliviar o stress e atenuar a nossa resposta fisiológica.
Mas apesar de indivíduos com compulsão alimentar libertarem mais dopamina em resposta a pistas associadas ao alimento, os níveis basais parecem ser mais baixos. Alguns autores levantam até a hipótese do binge ser uma forma de compensar um sub-funcionamento do NAc. E como os níveis basais são mais baixos, a privação do estímulo leva a uma queda brutal da dopamina nos centros de recompensa, e a um aumento da ansiedade consequente. Uma ressaca propriamente dita. Mas mais do que isso, a restrição, a abstinência da ingestão de alimentos com elevada palatibilidade, ou a exposição intermitente a estes, parece contribuir para a compulsão. O proibido é o mais apetecido. Por exemplo, após sete dias de abstinência forçada de açúcar e do estímulo doce, o poder de reforço subjectivo destes alimentos aumenta em 33%. A dopamina aumenta mais na expectativa da sua ingestão, relacionando-se também com um consumo aumentado até ao limiar de gratificação. Até pararmos.
Mas o inverso também é verdade, o que ilustra um importante mecanismo de defesa neurobiológico - a habituação. Estímulos repetidos são cada vez menos gratificantes e menos dopamina é libertada na sua antecipação e consumação. Por exemplo, 1 torrão de açúcar aumenta X dopamina num ratinho. Aumentamos para 2 no dia seguinte e temos 2X dopamina. Mas subimos para 3 torrões e apenas vamos ter X dopamina em resposta. A previsibilidade e repetição reduzem a gratificação. É apenas mais do mesmo e garantido. Se um ambiente é abundante num estímulo, sejam alimentos doces como sinal de densidade energética por exemplo, não precisamos de ser “lambões” pois estará lá sempre para nós. Se eu comer macarrão com queijo todos os dias vou reduzindo progressivamente a quantidade ingerida ao longo do tempo porque me vai dando menos prazer. O que não parece acontecer se esse estímulo for esporádico ou intermitente. Do que facilmente entendemos que para alguém com compulsão alimentar a restrição dificilmente será uma solução. Em restrição calórica a habituação é inibida. Não só se liberta mais dopamina após um período de restrição quando somos expostos a um alimento, com um aumento da vontade em resposta a pistas internas e externas, como não nos habituamos ao seu consumo. Vamos ter sempre vontade, mesmo que a sua disponibilidade seja constante.
A área tegmental ventral também responde à leptina com inibição da dopamina. A leptina baixa quando estamos sob restrição calórica ou perdemos peso, o que aumenta a libertação de dopamina e a vontade de comer junk food e alimentos muito palatáveis. E efectivamente há uma relação entre a perda de peso e o aumento de comportamentos de binge, em particular quando somos sujeitos a um factor de stress. Por outro lado, na obesidade verifica-se resistência à leptina cujo resultado é idêntico. Mais motivação e vontade de comer.
O que discutimos até aqui já nos diz algo acerca de como deverá ser a intervenção nutricional em casos de compulsão. Deve ser evitado um deficit calórico, e perder peso será muito difícil sem intervenção farmacológica até se conseguir um controlo da compulsão. E a restrição “obrigada” de alimentos palatáveis só agrava o problema. Existem momentos em que não estamos preparados para perder peso, e essa não deverá ser a prioridade. É o que acontece na compulsão alimentar. Há que estabilizar primeiro, e o emagrecimento acontecerá em consequência.
Apenas como curiosidade, sabemos que o chocolate é precisamente um dos alimentos mais palatáveis e mais procurados em episódios de binge, e há uma razão de ser. Além de rico em açúcar e gordura saturada, ácido esteárico, também contém feniletilamina que aumenta a libertação de dopamina e compensa a subactividade no NAc. Mecanismo que atenua a resposta fisiológica ao stress neurogénico.
O papel da serotonina
Até este ponto falámos do sistema de recomenpensa, mas a compulsão alimentar é um fenómeno multifactorial com o contributo de vários mecanismos e desequilíbrio de neurotransmissores. A actividade serotonérgica é um desses mecanismos. A serotonina é um neurotransmissor que se associa ao bem estar, humor, cognição, controlo de impulsos e pensamentos obsessivos em loop, mas também ao apetite e aos cravings por alimentos ricos em hidratos de carbono, onde se incluem os açúcares/doce.
Os neurónios serotonérgicos estão disseminados no sistema nervoso central e projectam do núcleo de Raphe para várias regiões, entre elas o hipotálamo onde vão exercer uma acção anorexígena. A compulsão parece estar também associada a uma menor actividade da serotonina, que favorece a obsessão pela comida, os comportamentos impulsivos, e uma tendência para a auto-agressão. O que fundo é também um resultado da compulsão alimentar.
Curioso notar que o deficit serotonérgico está associado a uma fome selectiva por hidratos de carbono e doce. E que essa fome selectiva deverá ter como intuito estimular a produção de serotonina para compensar a baixa actividade. Isto porque a ingestão dos hidratos de carbono leva ao aumento da insulina, que por sua vez promove indirectamente a passagem do triptofano através da barreira hematoencefálica, o aminoácido precursor da serotonina. O triptofano compete com aminoácidos de cadeia longa e neutra pelo transportador na barreira hematoencefálica, em particular com os de cadeia ramificada (BCAAs) que estão em maior concentração no sangue. A insulina mobiliza esses BCAAs para os tecidos periféricos, e a concentração relativa de triptofano aumenta. Mais vai passar a barreira hematoencefálica e estará disponível para síntese de serotonina. O aumento da produção com um consumo elevado de hidratos de carbono iria então compensar a menor actividade serotonérgica.
Este efeito apenas se parece verificar quando o aporte proteico na refeição é baixo, inferior a 6%. Isto porque as proteínas têm aminoácidos que vão competir com o triptofano e menos serotonina vai ser formada. E também por isso é escusado pensar em aumentar o consumo de alimentos ricos em triptofano, como o peru por exemplo. Ele vem sempre acompanhado de outros aminoácidos que acabam por anular esse efeito por competição. Mas a suplementação com triptofano em isolado tem sido testada, com alguns estudos a sugerir um efeito positivo no humor e relaxamento, mas pouca ou nenhuma evidência de uma redução dos episódios compulsivos.
O mesmo se verifica para o 5-HTP, um suplemento alimentar muito comum e que se trata de um derivado do triptofano precursor da serotonina. O aumento dos níveis no sistema nervoso central não parece significativo pela baixa permeabilidade da barreira hematoencefálica ao 5-HTP, e extensa metabolização intestinal onde também é transformado em serotonina. Serotonina essa que não acede ao sistema nervoso central e é essencialmente usada na regulação da função entérica. É verdade que algumas pessoas relatam melhorias dos sintomas, neste caso redução dos episódios de binge, mas a evidência não suporta a sua utilização neste contexto. Não descartando um eventual efeito positivo talvez por um aumento da disponibilidade de triptofano que é poupado da metabolização intestinal. A depleção de triptofano parece associada à ocorrência de compulsão, um fenómeno que se sabe verificar em restrição calórica. E que em parte está associado ao aumento de cortisol que ocorre em dieta e da maior oxidação do triptofano. Os níveis séricos de triptofano baixam em dieta, e as mulheres parecem mais suscetíveis a esse respeito do que os homens com uma redução mais rápida da serotonina. Provavelmente pela importância dos estrogénios na regulação da triptofano hidroxilase, enzima limitante na via de síntese da serotonina.
Portanto, a compulsão pode estar também associada a baixa actividade da serotonina, o que terá uma base genética ou como resultado de trauma, stress recorrente, ou exposição a dietas restritivas cíclicas. Em particular quando há já uma predisposição para um baixo tónus serotonérgico. É o que se verifica por exemplo em sobreviventes do Holocausto, onde se verifica um aumento da ocorrência de binge eating e ingestão compulsiva em situações de stress. O mesmo foi verificado em adolescentes no Líbano, por exemplo, um país marcado pela guerra. Traumas, e em particular durante o desenvolvimento até à adolescência, aumentam o risco de compulsão alimentar.
Percebemos também a importância da actividade serotonérgica pela eficácia dos inibidores selectivos da recaptação de serotonina no controlo do binge eating. Em particular a fluoxetina, o mais usado por exercer um efeito tendencialmente neutro no peso. No passado usou-se também a fenfluramina que já não é recomendada, uma substância que aumenta a libertação de serotonina e tem um efeito inibidor do apetite bastante marcado.
O stress
Um factor que parece central nos desequilíbrios de neurotransmissores que estão na base da compulsão é o stress. De uma forma genérica podemos defini-lo como um factor que nos desvia do equilíbrio. Que nos tira da homeostase. Pode tratar-se de um factor interno, como quando os níveis de glicose baixam no sangue por exemplo, ou então a ameaça de um urso que nos quer comer. Mas quando falamos em stress o que nos vem à ideia é o stress neurogénico, de natureza psicológica e emocional que não representa uma ameaça física real. E que tende a manifestar-se por muito tempo de uma forma crónica. Nós somos bons a lidar com stress agudo, episódico, mas não temos mecanismos eficientes para lidar com o stress continuado sem consequências.
Um dos mediadores da resposta fisiológica ao stress é o cortisol, que também tem um efeito orexígeno, de marcado aumento do apetite. Isto porque estimula a produção de NPY e aumenta a degradação da serotonina. O cortisol também aumenta a expressão dos receptores D1 como vimos, e da libertação aguda de dopamina. Temos um aumento da motivação para ingerir alimentos palatáveis, com o objecitvo de atenuar o próprio stress. É no fundo uma estratégia de coping.
Mas a resposta individual do apetite varia quando expostos a um mesmo factor de stress. Estima-se que em 40% das pessoas aumente o apetite, em 40% tenha um efeito contrário, e em 20% seja neutro. Mas o mais interessante é que a quantidade de alimento ingerido parece ser directamente proporcional ao cortisol produzido. Os indivíduos muito reactivos, que produzem muito cortisol em resposta, comem mais quando expostos a factores de stress. O que ilustra bem o impacto que o cortisol parece ter no apetite, numa tentativa de alivar esse mesmo stress. E daí que a grande maioria das estratégias que habitualmente nos dão para lidar com episódios de compulsão sejam comportamentais. Passam também por uma tentativa de mudar o foco da comida para outra actividade, ou que tenham também um impacto na atenuação do stress. Como a música ou um filme humorístico por exemplo.
Existem também alguns suplementos adaptogénicos que alegadamente terão impacto na redução dos cravings, apetite, e nos níveis de cortisol. A Ashwagandha é provavelmente o mais estudado, com uma acção GABAérgica inibitória do eixo hipotálamo-pituitária-adrenais (HPA) e que resulta numa redução do cortisol. No entanto, a evidência na redução significativa dos episódios de compulsão é fraca ou inexistente. Infelizmente não encontramos grande eficácia nos suplementos naturais em geral.
Mas quero chamar a atenção para o papel do exercício. Uma mera caminhada da 15 min a passo acelerado pode reduzir o apetite induzido por stress. O exercício físico em geral sabe-se afectar o apetite de várias formas, e também o cortisol. Apesar de aumentar o cortisol de forma aguda, como stress que é numa intensidade média/alta, indivíduos fisicamente activos apresentam menor exposição ao longo do dia e melhor resposta ao stress do que sedentários. Além disso o músculo em esforço produz miocinas de efeito anorexígeno, e endorfinas. Em esforços mais longos de natureza aeróbia a serotonina também aumenta. Mas mesmo em actividades curtas e de baixa intensidade o efeito parece ser manifestado, indiciando que a simples deslocação do foco poderá ter um impacto positivo. E um outro aspecto em que o exercício em muito ajuda é na melhoria da sensibilidade à insulina, um processo que também poderá estar associado à compulsão alimentar.
A resistência à insulina
A resistência à insulina tem sido associada à compulsão e à fome hedónica. Uma consequência da obesidade como sabemos, e de uma dieta ocidentalizada moderna. A insulina tem uma acção anorexígena a nível hipotalâmico, é importante no metabolismo da serotonina, e a resistência está associada a uma disrupção dos mecanismos de controlo do apetite. O receptor de insulina é expresso em várias regiões do cérebro e está envolvido numa variedade de processos.
Os receptores são também densamente expressos na amígdala, o centro que integra os sinais sensoriais e corticais na resposta ao stress. E que se sabe também projectar para o hipotálamo neurónios que produzem NPY, que dribla os mecanismos homeostáticos de regulação do apetite. Ou seja, a fome induzida por stress prevalece às necessidades fisiológicas e é independente destas. A administração de insulina directamente na amígdala parece reduzir o apetite e também a ansiedade, com uma atenuação da actividade do eixo HPA. Reduz o stress. Um efeito que é totalmente abolido com poucos dias de uma dieta high-fat. A resistência à insulina bloqueia o efeito anorexígeno da sua acção.
Além do hipotálamo e da amígdala, também a área tegmental ventral e o NAc expressam receptores de insulina e a sua activação inibe a libertação de dopamina. O que reduz o consumo e motivação para ingerir alimentos de elevada palatibilidade. Sabe-se também que indivíduos com resistência à insulina apresentam uma maior apetência para alimentos muito palatáveis, provavelmente pelo menor efeito inibitório da insulina no VTA e striatum. Na insulino-resistência há uma maior libertação de dopamina em antecipação do alimento.
No que respeita à serotonina já percebemos como a insulina é importante. Aumenta o triptofano livre e a sua passagem pela barreira hemato-encefálica, reduzindo também a actividade da monoamina oxidase (MAO). O que promove a actividade serotonérgica por inibição da degradação. Na resistência à insulina os BCAAs em circulação aumentam e a passagem do triptofano para o sistema nervoso central diminui, tal como a produção de serotonina. O que como vimos pode contribuir para a compulsão alimentar por redução da acção serotonérgica.
Um suplemento muito recomendado para os cravings, em particular por doces, é o picolinato de crómio. Sugere-se que aumenta a sensibilidade à insulina por potenciar a acção do receptor, sem conhecimento do mecanismo em concreto. Mas a evidência é fraca em relação ao seu impacto na compulsão alimentar ou cravings, e a literatura tem apenas demonstrado algum efeito em diabéticos. A sensibilidade à insulina explica 40% da variância na resposta ao crómio, e a resistência à insulina está associada a menores níveis de crómio no organismo. É verdade que alguns indivíduos reportam melhoria dos sintomas, mas é uma resposta muito aleatória que pode não ir além de um efeito placebo.
A resistência à insulina é um processo intimamente relacionado com a inflamação, que no hipotálamo se parece manifestar em fases precoces da patofisiologia e contribuir para os desequilíbrios de neurotransmissores que reconhecemos na compulsão alimentar. Aqui os omega-3 têm um papel importante pela sua acção anti-inflamatória, em particular o EPA, e menor produção de prostaglandinas que estimulam a degradação de serotonina. Portanto, podemos assumir que um aporte adequado de ómega-3 ajuda a garantir as condições que permitem o controlo homeostático normal do apetite, e uma melhoria da sensibilidade à insulina. Um efeito amplamente descrito na literatura.
Conclusão
Em jeito de síntese, é importante deixar claro que a nutrição ou o exercício dificilmente serão por si estratégias que permitam tratar a compulsão alimentar. A psicoterapia, e por vezes até a medicação, serão necessárias na grande maioria dos casos. O tratamento deverá seguir uma abordagem integrada e multidisciplinar, com orientações importantes a nível nutricional que não se dissociam do comportamento.
A restrição energética deve ser evitada pois potencia a compulsão, assim como a exclusão de grupos alimentares específicos. Particularmente dos hidratos de carbono que por norma são os mais sacrificados, mas que quando restritos tende a agravar e aumentar a frequência de episódios de binge. Existe também evidência de que essa restrição pode ser definida em períodos discretos. Uma maior restrição de manhã associa-se à compulsão tardia, o que assume proporções de um ciclo vicioso. Comendo muito ao fim do dia tentam compensar na manhã seguinte com restrição, o que leva a mais um episódio tardio. Há que promover um padrão alimentar matutino e regular, sem compensações quando a compulsão ocorre.
Sabemos também que uma dieta menos inflamatória, onde os ómega-3 desempenham um papel importante, pode ajudar no equilíbrio dos neurotransmissores envolvidos na patofisiologia da compulsão alimentar. E deve ser promovida por este e todos os motivos que possamos imaginar. Que além do aporte adequado dos ómega-3 deve também conter uma variedade de alimentos e condimentos com compostos bioactivos de acção anti-inflamatória generalizada. Como a curcuma, gengibre, frutos vermelhos, entre outros.
Por outro lado, a grande maioria dos suplementos alimentares são de eficácia duvidosa e sem suporte científico. Não há um atalho para ultrapassar a compulsão alimentar, e vencê-la é um desafio difícil que não passa apenas por força de vontade. Nos episódios de compulsão comer ou não comer é tanto uma escolha como fazer Lisboa-Porto a pé ou de comboio. Não são opções que se possam encarar de uma forma justa. Somos compelidos para o comportamento de uma forma que foge ao nosso controlo consciente.
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