Porque é tão difícil resistir a um craving por certos alimentos? Porque simplesmente não é suposto e a nossa arquitetura cerebral está desenhada para cedermos ao prazer. Negar ou adiar a recompensa é um dom que nós humanos adquirimos ao longo da evolução de zonas corticais superiores, mas que contraria os processos biológicos mais básicos e viscerais. E um deles é o prazer associado a comportamentos essenciais à sobrevivência. Seja comer para viver ou sexo para reproduzir e garantir a persistência dos nossos genes. Estamos intrinsecamente motivados para o prazer e recompensa, e todos os animais buscam estratégias que o maximizem.
O nosso peso corporal é regulado a nível central com ajustes autónomos do apetite e gasto energético em torno de uma faixa de equilíbrio. Equilíbrio esse que parece ser defendido de uma forma menos capaz nos seus limites superiores. As forças selectivas que baixam esse ponto deixaram cedo de exercer pressão. Por exemplo, o risco de predação e elevado dispêndio energético na caça que o” puxa” para baixo. Por outro lado, as forças selectivas de fenótipos “poupadores” predominam, protegendo-nos em períodos intermitentes de fome que terão sido comuns até mais recentemente. O perigo do excesso seria inexistente quando o gasto era alto e a disponibilidade de alimento baixa. Mas o que antes nos protegia, torna-se agora deletério num ambiente de abundância e de elevada carga alostática (stress crónico multifactorial).
O prazer associado aos alimentos é em certa medida uma manifestação deste fenómeno evolutivo. Os que apresentam um maior poder de reforço ou incentivo, como açúcar/doce, gordura e sal terão sido escassos no passado e indicadores de um ambiente de abundância. Perfeito para ingerir além das necessidades energéticas efectivas e criar reservas para um período de escassez que virá. Só que não vem... O drive para comer parece ser mais forte do que os inputs de saciedade.
Podemos pensar na ingestão alimentar como um processo de fundo interrompido periodicamente por estímulos de saciedade e sono. E o comportamento até à refeição é dividido em 4 fases distintas:
Iniciação (fome e atenção selectiva para o alimento)
Procura (comportamento para o obter)
Consumação (a ingestão)
Terminação da refeição (final da ingestão por saciedade e inibição)
A iniciação e procura, que enquadramos na fase apetitiva ou pré-ingestiva, são potenciados e motivadas por inputs directos e indirectos. Entre os directos temos estímulos olfactivos e visuais, mas que apenas ganham significado após aprendizagem associativa. Não sabemos o que significam até experimentar e criar uma memória que será acedida das próximas vezes. E a essas memórias podem estar associadas representações de valor, estado emocional num momento, ou até punição/recompensa.
Os estímulos gustativos por seu lado têm caracter directo e indirecto. Os receptores sensoriais na boca e tubo digestivo enviam informação ao cérebro sobre o carácter nutricional, mas informação essa que ganha reforço também através de representações associativas e memória. Durante uma refeição estamos constantemente a receber inputs orosensoriais que sinalizam a entrada de energia mas também comparam os atributos sentidos com os esperados. No fundo comparam as sensações com as representações indirectas que estabelecemos. O nosso cérebro também recebe informação do estado nutricional através de hormonas como a insulina, leptina, incretinas, grelina, entre outras, e até do estado das nossas reservas. Mas esta informação caracteriza estímulos directos mais associados a respostas fisiológicas autónomas.
Existem também inputs exclusivamente indirectos através de memórias associativas consolidadas cujo acesso pode ser facilitado pelo estado interno e emocional. Falamos por exemplo de recompensa/punição associada a determinados alimentos. “Portas-te bem dou-te uma bolacha”. Ou “portei-me bem e mereço”. E como disse, o estado fisiológico pode condicionar também o acesso a essas memórias. Por exemplo, os ratinhos atendem mais a estímulos associados ao doce, memórias associativas, quando a utilização de glicose como substrato energético é inibida ou quando em hipoglicemia. É natural que o alimento restringido seja o mais apetecido, e que o seu poder de reforço seja maior.
De uma forma muito simplificada podíamos estruturar o cérebro no modelo triuno de MacLean. A região reptiliana (1), compreendendo o hipotálamo, tronco encefálico e zonas medulares que regulam funções fisiológicas básicas e involuntárias. É a zona mais primitiva do nosso cérebro e partilhada por quase todas as espécies animais. Temos também a região límbica (2), associada ao prazer e emoções, e a zona cortical (3) da razão e cognição. Apesar das interconexões complexas que não se coadunam com um modelo estanque, a zona cortical e límbica influenciam a função de regiões executivas, como o hipotálamo e o tronco encefálico. O córtex e região límbica também interagem fortemente entre si. É neurologicamente impossível separar a razão da emoção, e as suas influências no comportamento humano. Incluindo o alimentar. O neurocientista António Damásio dedica um ensaio a esta relação promiscua entre a racionalidade e emoções – “O Erro de Descartes”.
E para ilustrar o drive natural para a fome e ingestão, as conexões eferentes directas do córtex para regiões que controlam o comportamento alimentar ocorrem apenas para regiões orexígenas (de aumento do apetite), como a zona lateral e núcleo dorsomedial do hipotálamo. Inteligente é comer, ou seria num ambiente hostil que cicla períodos de carência e abundância. Um ambiente que não este em que vivemos. Claro que o córtex pré-frontal pode exercer acção inibitória no apetite, que ocorre por intermédio de estruturas límbicas. Diz “não” à fome associada ao reforço e poder de incentivo, substituindo ou adiando a recompensa. Uma das questões mais pertinentes na neurobiologia do comportamento alimentar é como o córtex e o sistema límbico se sobrepõem ao hipotálamo para iniciar a refeição na ausência de um sinal de carência energética. Da mesma forma como o hipotálamo se sobrepõe aos demais quando estamos em quebra. Uma pergunta que ainda carece resposta.
Mesmo sendo a busca do prazer um comportamento natural, o stress crónico pode aliviar a acção inibitória do córtex ao sistema límbico. A predominância da actividade límbica motiva a procura da recompensa imediata como forma de coping a esse stress. E a recompensa pode estar naquele alimento associado a um reforço positivo e gratificação. Na verdade, a área que integra o stress emocional numa resposta fisiológica faz parte do sistema límbico. A amígdala, uma estrutura complexa e com densas interconexões ao hipotálamo, tronco encefálico, regiões corticais, e medula. E que se sabe estar associada ao comportamento alimentar, de forma directa e indirecta. Lesões na amígdala alteram o comportamento alimentar. A activação aguda tem um efeito inibitório do apetite por activação do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal. Os neurónios glutamatérgicos na amígdala enervam aferentemente neurónios CRH no núcleo paraventricular do hipotálamo. A CRH actua como neurotransmissor anorexígeno (inibidor do apetite). Em momentos de stress agudo e traumático o comportamento alimentar é inibido. Não temos fome antes de um exame importante. Nem quando um familiar falece ou terminamos uma relação duradoura. Mas quando esse stress alivia ou se torna crónico, o impacto do cortisol prevalece sobre o efeito anorexígeno da CRH. O cortisol aumenta o apetite e promove comportamentos compulsivos pelo impacto a longo prazo em neurotransmissores como a serotonina e dopamina, bem como retração literal de sinapses em zonas corticais e hipocampo. O inconsciente e involuntário assume o controlo em momentos de maior stress emocional.
Na mediação do comportamento motivado por recompensa duas estruturas límbicas se destacam. A área tegmental ventral (VTA) e núcleo accumbens (NAc). Este último é importante para comportamentos direccionados a um objectivo e na aprendizagem instrumental ou condicionamento. Na associação entre uma acção e um reforço. O cão salivar quando a campainha toca após condicionamento com comida, tal como demonstrou Pavlov. Ou pressionar uma alavanca para obter um torrão de açúcar. O NAc traduz a motivação numa acção motora através de uma outra estrutura, o pallidum ventral, que enerva o tronco encefálico e medula. Áreas executivas do sistema nervoso central.
O neurotransmissor mais importante nos comportamentos de incentivo é a dopamina, que o motiva e sustém. Neurónios dopaminérgicos enervam o NAc determinando o nível de desejo por uma recompensa. Quanto mais dopamina, mais queremos e mais motivados estamos para a obter. Mas o sistema dopaminérgico VTA - NAc não determina o valor de reforço e prazer associado, que depende do estado interno e memórias associativas “boas”. Apenas sinaliza o quanto queremos. O “querer” e o “gostar” são componentes distintas da recompensa, e o caminho para a obter pode ser tão gratificante quanto o objectivo em si. Após condicionamento, a dopamina não sobe apenas quando o ratinho come o açúcar. Aumenta sim ao pressionar a alavanca e na expectativa da recompensa. E esse aumento prevê a quantidade ingerida de um alimento com elevado poder de reforço. Por exemplo, quanto mais dopamina produzimos ao ver um anúncio televisivo de fast-food, mais comemos quando esse alimento nos é apresentado de seguida e mais esforço estamos dispostos a fazer para obter a refeição. A actividade neuronal no VTA e NAc não está associada à palatibilidade de um alimento, o quanto ele nos sabe bem, mas sim à antecipação da recompensa e expectativa de reforço positivo. Aspectos intimamente relacionados com representação associativas de emoções a certos alimentos.
E também o sistema límbico nos mostra que o proibido é o mais apetecido. Ou posto de outra forma, que o desejo aumenta por alimentos que restringimos cognitivamente. Por exemplo, após 7 dias de abstinência forçada de açúcar e estímulo doce o poder de reforço subjectivo destes alimentos aumenta em 33%. A dopamina aumenta mais na expectativa da sua ingestão, relacionando-se com um consumo aumentado até ao limiar de gratificação. Mas o inverso também é verdade, ilustrando um importante mecanismo de defesa neurobiológico - a acomodação ou habituação. Estímulos repetidos são cada vez menos gratificantes e menos dopamina é libertada na sua antecipação e consumação. Por exemplo, 1 torrão de açúcar aumenta X dopamina num ratinho. Aumentamos para 2 no dia seguinte e temos 2X dopamina. Mas subimos para 3 torrões e apenas vamos ter X dopamina em resposta. A previsibilidade e repetição reduzem a gratificação. É apenas mais do mesmo e garantido. Se um ambiente é abundante num estímulo, sejam alimentos doces como sinal de densidade energética por exemplo, não precisamos de ser “lambões” pois estará lá sempre para nós. Se eu comer macarrão com queijo todos os dias vou reduzindo progressivamente a quantidade ingerida ao longo do tempo. O que não acontece se esse estímulo for esporádico. Daqui facilmente entendemos que para alguém com compulsão alimentar a restrição imposta dificilmente será solução. Comer ou não deve ser uma escolha e não uma limitação.
É verdade que todos os que foram bem sucedidos a perder peso e alguns dos que o conseguem controlar activamente apresentam algum grau de inibição alimentar. Mas distinguem-se dois perfis distintos. Os flexíveis, que não categorizam os alimentos em escalas de valor, bons e maus, permitidos e proibidos, e o perfil mais rígido “tudo ou nada” que tende a fortes associações emocionais e de valor moral intrínseco aos alimentos. Desejam mas não podem comer porque é mau, e se cedem sentem-se fracassados. A dopamina dispara na antecipação do estímulo negado, o comportamento é desinibido e a ingestão assume proporções compulsivas.
Esta é apenas uma breve introdução à neurobiologia do comportamento alimentar. Um fenómeno complexo com influência fisiológica, cognitiva e emocional. Iniciado por estímulos externos e internos, tanto directos como indirectos pelas memórias associativas que estabelecemos entre emoções, recompensas e punições com certos alimentos. O comportamento alimentar tem uma componente fisiológica e psicológica indissociável. E por isso o tratamento de distúrbios requer uma abordagem concertada e multidisciplinar. Dizer que não a um alimento nem sempre é apenas uma questão de força de vontade. Ou melhor, é tanto quanto decidir fazer Lisboa-Porto de comboio ou ao pé coxinho. Possível é, mas a escolha não é uma opção equilibrada. Está condicionada por um drive biológico interno forte que condiciona o comportamento. E para o mudar há que trabalhar em simultâneo na nutrição e nas causas da disrupção dos sistemas de controlo voluntário. Que podem ser meramente funcionais, mas que geralmente estão em níveis superiores da função cerebral. A emoção e cognição.
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