Comecemos com uma história breve. Roseto Valfortore era uma aldeia Italiana perto de Roma, no sopé dos montes Apeninos. Os paesani da vila trabalhavam nas pedreiras de mármore locais ou cultivavam os campos no vale, descendo todos os dias da montanha pela manhã e fazendo a mesma longa jornada ao final do dia. Uma vida dura. Os aldeões eram pouco instruídos e muito pobres, sem esperança de uma vida melhor, até que uma notícia chegou a Roseto no final do séc. XIX sobre a “terra de oportunidades” no outro lado do oceano para onde muitos Italianos estavam a emigrar. Os Estados Unidos da América.
Em 1882, 10 homens e um rapaz, partiram para Nova Iorque. Passaram a primeira noite na América a dormir no chão de uma taberna de “Little Italy”. Aventuraram-se para oeste, encontrando trabalho em pedreiras de ardósia a 100 km da cidade de Bangor, na Pensilvânia. No ano seguinte mais 15 Rosetanos deixaram Itália pela América, e vários elementos desse grupo acabaram também em Bangor juntando-se aos seus compatriotas no trabalho da pedreira que tão bem conheciam. As notícias chegaram à vila natal sobre a promessa do Novo Mundo. Só em 1894 cerca de 12 000 pediram passaportes para a América, deixando a sua vila natal ao abandono. Os Rosetanos começaram a comprar terrenos numa encosta rochosa ligada a Bangor. Construíram casas com telhas vermelhas ao longo da encosta. Ergueram uma igreja com o nome “Our Lady of Mount Carmel”. Inicialmente chamaram à sua vila “Nova Itália”, mas depressa mudaram para Roseto. Muito apropriado visto que quase todos eles provinham da mesma vila em Itália. Roseto tinha sido reerguida.
Em 1896, um jovem padre chamado Pasquale de Nisco assumiu a igreja. Ele encorajou os aldeões a limpar e cultivar a terra nos grandes quintais atrás das suas casas. A cidade nasceu e cresceu. Os Rosetanos começaram a criar porcos e a cultivar uvas para fazer o seu próprio vinho, tal como na sua vila natal. Escolas, um parque, um convento e um cemitério foram também construídos. Pequenas lojas, padarias, restaurantes e bares abriram ao longo da avenida principal. Mais de uma dúzia de fábricas de camisas também. A vizinha Bangor era maioritariamente britânica e a outra cidade mais próxima era alemã, razão pela qual, dadas as más relações entre ingleses, alemães e italianos, Roseto ficou isolada aos seus habitantes. Roseto, na Pensilvânia, era o um pequeno e autossuficiente Mundo, intocado pelo resto da América. E poderia muito bem ter ficado assim se não fosse um jovem médico e professor chamado Stewart Wolf.
Wolf estudava gastroenterologia e ensinava na escola de Medicina da Universidade de Oklahoma. Passava os seus Verões numa quinta na Pennsylvania não muito longe de Roseto e numa dessas vezes foi convidado para uma conferência na sociedade médica local. Quando terminou foi beber cerveja com os colegas e um deles mencionou algo como: “Sabe, eu exerço medicina há décadas. Recebo pacientes de todo o lado e raramente encontro alguém de Roseto com menos de 65 anos que sofra de doenças cardíacas”. Não era possível. Estávamos na década de 50, anos antes da era das estatinas e a cirurgia cardiovascular estava ainda na sua infância. Os ataques cardíacos eram uma epidemia nos EUA, e a principal causa de morte nos homens com menos de 65 anos. Wolf decidiu investigar.
Alguns dos seus alunos e colegas de Oklahoma foram chamados para ajudar. A equipa reuniu todos os certificados de óbito dos residentes de Roseto. Analisaram todos relatórios médicos. Verificaram o historial clínico e construíram árvores genealógicas inteiras. Uma tarefa árdua que começou em 1961. O presidente da câmara prontificou-se a ajudar e disponibilizou a sala do conselho para a equipa trabalhar. Ele tinha quatro irmãs que lhes traziam o almoço todos os dias. A população de Roseto colaborou e foi avaliada por Wolf.
Os resultados foram surpreendentes. Inacreditáveis naquela época até para ele. Em Roseto, virtualmente ninguém com menos de 55 anos morreu de ataque cardíaco ou mostrou sinal de doença cardiovascular. Para os homens acima dos 65 anos, a taxa de mortalidade por doença cardíaca era metade da observada a nível nacional nos EUA. As taxas de mortalidade por todas as causas eram de facto 35% mais baixas em Roseto do que no resto do país. Havia algo de especial em Roseto, e Wolf estava disposto a descobrir o que era.
Um sociólogo de Oklahoma chamado John Bruhn veio juntar-se à equipa que entrevistou de casa em casa todas as pessoas da cidade com mais de 21 anos. Não havia suicídio, alcoolismo, vícios em drogas, e o crime era muito raro. Úlceras gástricas também não. Estas pessoas estavam a morrer de velho e apenas isso. Algo que já naquela época não era de todo normal.
As primeiras hipóteses levantadas por Wolf sugeriam que os Rosetanos deveriam ter mantido algumas práticas alimentares da sua terra natal. Mas rapidamente se apercebeu que isso não era verdade. Os Rosetanos cozinhavam com banha em vez do azeite utilizado em Itália. A pizza em Itália era uma fina base com sal, azeite e talvez algum tomate, anchovas ou cebolas. Pizza na Pensilvânia era mais massa de pão com linguiça, salame, presunto e ovos. Em Itália, os doces costumavam ser reservados para o Natal e Páscoa. Em Roseto eles eram comidos durante todo o ano. Os Rosetanos da Pensilvânia fumavam e muitos eram obesos.
E a genética? Os Rosetanos eram um grupo aparentado da mesma região de Itália e o pensamento seguinte de Wolf foi que eles poderiam estar protegidos da doença. Então, ele procurou parentes dos Rosetanos que viviam em outros locais dos EUA para ver se partilhavam da mesma notável boa saúde. Mas não. Ele olhou então para a região onde os Rosetanos viviam. Seria possível que houvesse alguma coisa acerca de viver naquela encosta? As duas cidades mais próximas eram Bangor, logo abaixo da montanha, e Nazareth, a alguns quilómetros de distância. Ambas eram do mesmo tamanho de Roseto e habitadas pelo mesmo tipo de trabalhadores Europeus imigrantes. Wolf procurou nos registos médicos dessas cidades, e para homens com mais de 65 anos a taxa de mortalidade por doença cardíaca era 3 vezes superior à de Roseto. Mais um beco sem saída. E foi então que a epifania se deu.
O que Wolf começou a compreender foi que o segredo de Roseto não era a dieta ou exercício, genes ou localização. Era a própria Roseto. Enquanto Bruhn e Wolf caminhavam pela cidade perceberam porquê. Observaram como os Rosetanos faziam visitas regulares uns aos outros, paravam para conversar na rua ou passavam o tempo a cozinhar para os vizinhos no quintal. Eles perceberam a sólida estrutura social da cidade e sentido de comunidade. Viram como cada casa albergava três gerações debaixo do mesmo tecto, e o respeito que os mais velhos comandavam por todos. Contaram mais de 20 organizações cívicas diferentes numa cidade com pouco mais de 10 000 habitantes. Aperceberam-se da ética comunitária que desencorajava os ricos de ostentar o seu sucesso e fortuna, e ajudava as pessoas a ofuscar os seus fracassos. Ao transplantarem a cultura peasani do sul de Itália para as montanhas da Pennsylvania, os Rosetanos criaram uma poderosa e protectora estrutura social, capaz de os isolar do Mundo Moderno.
Quando Bruhn e Wolf apresentaram pela primeira vez as suas descobertas à comunidade médica podem imaginar o tipo de cepticismo e descrédito que enfrentaram. Conferências onde os colegas apresentavam longas tabelas de dados, falavam sobre este ou aquele gene, este ou aquele processo metabólico. E eles estavam ali a dissertar sobre os benefícios de as pessoas pararem para conversar na rua e conviverem com os vizinhos como se de uma grande família se tratasse. Viver uma vida longa julgava-se depender apenas daquilo que fazemos, comemos, e dos genes que herdamos. Wolf e Bruhn tiveram de convencer a Medicina a pensar sobre saúde e ataques cardíacos de uma forma totalmente nova. Não seriamos capazes de perceber porque alguém era saudável ou doente se estivéssemos apenas centrados nas escolhas e acções pessoais em isolado. Tínhamos de entender a cultura, relações, e história. Todo o stress que as afligia. A carga alostática de um indivíduo.
Estudos como o de Wolf deram gás à pesquisa sobre o impacto do stress na nossa saúde. Na verdade, a primeira relação entre as “emoções” e a doença foi estabelecida bem no início do século XX. As úlceras gástricas. E era uma grande chatice para os médicos na altura encarar e ter dizer ao paciente que tinha de relaxar, levar uma vida mais calma, e controlar o stress. Ou simplesmente mandá-lo para o colega da psiquiatria. Mas nos anos 80 os gastroenterologistas tiveram a melhor notícia das suas vidas. Havia sido descoberta a Helicobacter pylori, causa de todas as enfermidades e que podia ser tratada com um simples antibiótico. Já nem era preciso falar sequer com os doentes. O que a descoberta não explicava era por que razão a desgraçada da bactéria está presente em 60% da população e só 10% desenvolve doença. Os “antigos” não estavam errados. A bactéria era a bala, mas o stress o gatilho.
Uma das consequências do stress crónico é a imunodepressão mediada pelo excesso de glucocorticoides. Em condições normais o nosso corpo consegue reparar o dano que a H. pylori induz, mecanismos regenerativos esses que ficam comprometidos e permissivos à degeneração da mucosa gástrica pelo ácido clorídrico. A circulação do estômago fica também diminuída com a predominância da actividade simpática, originando zonas isquémicas propensas a lesão. E temos uma úlcera induzida por stress, ou uma simples gastrite.
Pela mesma altura que Stuart Wolf e John Bruhn estudavam o paradoxo de Roseto, Michael Marmot, também ele médico, dava os primeiros passos para o estudo quantitativo do impacto do stress na saúde. Mais tarde viria a liderar o maior e mais relevante de todos, o Whitehall Study de que falaremos depois. Na década de 60 Marmot fazia o seu doutoramento sobre factores de risco cardiovasculares em Japoneses residentes nos EUA, cuja incidência de doença era muito maior comparativamente aos que se mantinham pelo Japão. E qual a novidade? A ocidentalização da dieta era uma explicação suficiente para deixar todos satisfeitos. Aquela dieta Japonesa tão pobre em gordura era um exemplo na época, em total dissonância com os hábitos alimentares nos EUA e que muitos Japoneses emigrados tinham adoptado. Mas havia um problema... As diferenças no consumo de gordura saturada, o inimigo público na altura, não explicava as discrepâncias no perfil lipídico entre o Japão e os californianos de origem Japonesa. Além disso, a tendência crescente de mortalidade coronária não desaparecia com controlo das variáveis colesterol, pressão arterial e tabagismo. Nenhum factor de risco cardiovascular tradicional era capaz de explicar as diferenças verificadas entre os Japoneses nativos e os que residiam na Califórnia.
Foi então que Marmot optou por uma abordagem diferente. Estudou apenas os indivíduos de origem Japonesa que viviam nos EUA sob a hipótese de a cultura ser um factor relevante para a maior incidência de doença coronária. De facto, em indivíduos aculturados, com um estilo de vida Ocidental, a incidência de doença coronária era superior em todas as classes etárias. E os Japoneses na América que mantinham as suas tradições eram menos afectados pela aterosclerose. Mais uma vez o colesterol, pressão arterial, tabagismo, e até hábitos alimentares não explicavam este fenómeno. Era a cultura. Aspectos como a educação, língua, ocupação profissional e, acima de tudo, estrutura social. O grupo que se aculturou à vida californiana tinha mais do dobro da frequência de doença coronária. Os menos aculturados apresentavam uma prevalência semelhante à verificada no Japão. E a prevalência nos Japoneses que assimilaram a cultura Americana era similar à dos Caucasianos nativos dos EUA.
Marmot verificou um impacto superior dos aspectos sociais e culturais comparativamente aos factores de risco tradicionais e modificáveis, como a dieta, perfil lipídico, tensão arterial e tabagismo. Onde toda a atenção se centrava, e onde ainda se centra maioritariamente. A cultura Americana difere da Japonesa do dia para a noite. O Japão enfatiza a coesão de grupos, sucesso comunitário e estabilidade social. Estas características quase que antagonizam a sociedade Americana, virada para a mobilidade social e geográfica, e ambições individuais de carreira e estatuto. Tal como Wolf em Roseto, este estudo de Michael Marmot suporta a ideia de que uma sociedade estável, cujos membros gozam o apoio dos seus pares em grupos unidos, pode efectivamente proteger contra o stress que leva à deterioração da nossa saúde.
Michael Marmot estava apenas a iniciar a sua caminhada neste pântano, sujeito à resistência dos seus pares que não se dispunham a abrir mão da hipótese dieta-coração, ou até a assumir que ambas coexistiam. O mais sensato e sem dúvida o mais verdadeiro pelo que sabemos hoje. O Whitehall Study é incontornável quando se fala de stress. Um estudo enorme com funcionários públicos britânicos que se propunha avaliar e quantificar o efeito do stress no risco de desenvolvimento de doença e obesidade, que Marmot liderou e que ainda hoje produz resultados.
Sem maçar com os pormenores do estudo, as principais descobertas reforçam as hipóteses anteriores. Quanto maior o nível de stress ocupacional, maior o risco de doença cardiovascular e não só. Níveis hierárquicos mais altos sofrem menos do que os abaixo deles, e os intermédios na estrutura social parecem ser os mais afectados. Introduz-se aqui o factor controlo. Muito stress e pouco controlo, sem poder de decisão, parece ser a combinação mortal. O topo da hierarquia está mais protegido do stress ocupacional pela hipótese de bullying aos seus subordinados e delegação de tarefas. Uma estratégia de coping extremamente eficaz, mas apenas para as chefias obviamente. E os intermédios sofrem a pressão dos chefes e da sua agressividade deslocada em momentos de stress, com geralmente pouco poder de decisão e muitas responsabilidades. Os restantes peões apenas executam, o que é um pouco menos mau.
O risco de depressão e burnout, classificado em 2019 como doença pela Organização Mundial de Saúde, é também maior em indivíduos sujeitos a muito stress e com pouco controlo sobre ele. Patologias que associam componentes emocionais e comportamentais com aspectos fisiológicos. Alterações neuroquímicas, excesso de hormonas de stress, ou dessensibilização da resposta biológica a esse stress. E pior ainda se juntarmos a isso uma personalidade tipo A. Aquelas pessoas ambiciosas na carreira e estatuto, impacientes, rigidamente organizadas, inflexíveis, perfeccionistas e controladoras. Assim tipo eu. Nestes foi também encontrado um nível mais baixo de dopamina e actividade dopaminérgica mesolímbica que está de acordo com uma menor satisfação, prazer, motivação, distanciamento afectivo, e meio caminho para um emocional quase vegetativo. Tudo é meio sem sal. “Ganhei a lotaria? É bom. Parece que vai chover hoje...”. Mas com tendência a enfatizar os acontecimentos negativos.
O que Marmot e sua equipa verificaram não é exclusivo em nós, Humanos, e da nossa construção social. Sapolsky verificou algo semelhante nos seus estudos com babuínos no Quénia em ambiente selvagem, animais que assumem uma estrutura social de poder que se aparenta à nossa. Os alfa mandam nos beta, os beta nos gama, os gama nos restantes, e todos sabem o seu lugar. Um bocejo mais alto do alfa chega para afastar um beta daquela fruta suculenta. Ou da fêmea cobiçada. Como seria de esperar, os babuínos alfa têm níveis de stress e cortisol mais baixos que os subordinados. Quando estão entediados infernizam a vida dos outros e tudo fica bem. Mas pior fica para os súbditos, com cortisol e adrenalina a pingar das orelhas.
Mas um dia tudo mudou nesse grupo de babuínos que Sapolsky estudava. Um surto de tuberculose trazida por turistas Europeus matou muitos dos animais e, curiosamente, todos os machos alfa bully e mandões. A paz instalou-se e todos viviam em harmonia. Qualquer tentativa de um macho jovem subir ao poder era impedida pelo grupo que não estava para mais ditadores. Os níveis de cortisol baixaram, os indicadores de saúde melhoraram, e foram todos felizes para sempre. Pelo menos até onde sei.
No limite o stress pode até matar. Recordando a obra de Sir Arthur Conan Doyle “The Hound of the Baskerville”, escritor e médico, uma das personagens, Charles Barskerville morre de um enfarte causado pelo medo do fantasma que assombrava a família. Em 2001 David Phillips estuda a hipótese de o stress emocional crónico poder estar de alguma forma relacionado com a mortalidade por eventos cardíacos:
“Nós abordámos o problema pela identificação de um fenómeno cultural com associações negativas para um grupo (Chineses e Japoneses) e associações neutras para outro (Americanos e Europeus). Em Mandarin, Cantonês e Japonês, as palavras “morte” e “4” são pronunciadas de forma muito semelhante. A observação extensiva dos participantes por três dos nossos autores indica que o número 4 evoca desconforto e apreensão em alguns Japoneses e Chineses. Consequentemente, alguns hospitais na China e Japão não listam o 4º andar ou o quarto número 4. A foça aérea Chinesa omite o número 4 na designação dos aviões militares – uma omissão que deriva da ligação entre “4” e a morte. Os Japoneses evitam viajar no 4º dia do mês, e alguns pacientes Chineses mostram-se apreensivos em relação a esta data. A aversão ao número 4 é também evidenciada nos restaurantes. Se o número 4 traz stress supersticioso a alguns Chineses e Japoneses, e se a intuição médica de Conan Doyle estava correcta, a mortalidade cardíaca neste grupo deve ter um pico ao 4º dia de cada mês.”
Foi precisamente isso que verificaram. Um aumento significativo da mortalidade ao 4º dia de cada mês, algo que não acontece com outros povos que não o Chinês ou Japonês, onde o número 4 tem um significado neutro. Conan Doyle estava correcto e à frente do seu tempo.
E este não é obviamente o único caso relatado na literatura. Quando a Nova Zelândia perdeu a semi-final da taça de rugby em 2003 houve um aumento em 50% das admissões nos hospitais devido a problemas cardíacos, e 20% mais enfartes agudos do miocárdio. Inversamente, quando a França ganhou o campeonato do Mundo de futebol em 1998 verificou-se uma redução significativa na mortalidade cardiovascular após o evento. Pela vossa saúde, escolham sempre a equipa vencedora.
Por que motivo o stress, crónico ou agudo, aumenta o risco cardiovascular? Em primeiro lugar a actividade simpática e maior produção de adrenalina aumenta a pressão arterial e tem um efeito agregante nas plaquetas, aumentando o risco de formação de trombos e bloqueio à circulação sanguínea nas artérias coronárias. O aumento da pressão arterial danifica as paredes dos vasos sanguíneos nas zonas de bifurcação sujeitas a maior força de sazilhamento laminar. O risco de ruptura das placas de ateroma nas paredes das artérias é maior, há extravasamento para o vaso, e temos um ataque cardíaco de uma forma muito resumida e simplificada.
A elevação do cortisol também tem o seu contributo para o aumento de risco e hipertensão. O volume do plasma aumenta e inibe a produção de substâncias vasodilatadoras. A homocisteína sobe, com efeito deletério na função dos vasos, e a glicemia também. A insulina torna-se ineficiente na sua função vasoprotectora, passando a exercer um efeito vasoconstritor que reduz a “elasticidade” dos vasos. O perfil lipídico deteriora, com uma redução do HDL, aumento do colesterol e triglicéridos. Para além claro do aumento da gordura intra-abdominal e inflamação que falaremos depois.
O sistema cardiovascular não é o único a ser afectado pelo stress crónico. A imunidade fica também comprometida, com aumento do risco de infecções oportunistas e menor capacidade regenerativa dos tecidos. O risco de doenças autoimunes aumenta, bem como a recorrência de sintomas em momentos de maior stress. Ficamos mais débeis no combate à agressão externa pois para o nosso corpo é momento de preparar para o combate. A reparação fica para depois. O problema é que o combate nunca mais acaba, se é que sequer começou fora da nossa mente.
O mesmo acontece com o sistema reprodutor. Nada mais estupido do que pensar em procriar numa situação de perigo iminente, antecipado, imaginário, ou até num ambiente percepcionado como hostil. Vem aí um leão, ovula noutro dia. Produz espermatozoides mais tarde. Pensa em sexo na próxima semana. Aliás, nem vais conseguir uma erecção pois precisas de sangue noutro sítio. O desejo sexual esvanece, em grande parte pela redução da dopamina que já falámos. Ao contrário do que se pensa, pequenas flutuações nos níveis de testosterona têm mais impacto na líbido das mulheres do que nos homens. Seria preciso ela cair muito, o que raramente acontece. A redução é relativamente moderada, e o problema é mesmo da cabeça. Do cérebro entenda-se.
A própria função sexual é afectada e quase todos os homens terão enfrentado isto em algum momento das suas vidas. Impotência transitória em períodos de maior stress e ansiedade. O acto sexual é algo complexo. O sistema nervoso autónomo simpático (SNS) e parassimpático (SNP) aliam-se para manter uma erecção até à ejaculação. A excitação do momento activa o SNS mas o SNP inibe-o e domina a situação. O fluxo sanguíneo é mantido no pénis, o corpo cavernoso incha, e a erecção é mantida. O SNS continua a “empurrar” o SNP para sair de cena mas o SNP vai-se aguentando. Até ao momento em que o SNS ganha, o SNP é desligado, e temos uma ejaculação. Acabou-se a erecção. Ora, numa situação de stress em que o simpático é dominante dificilmente há erecção, ou na melhor das hipóteses teremos uma ejaculação precoce. Despacha isso que vem aí o leão.
E continuamos com o sistema digestivo, mais um gasto fútil quando precisamos de mobilizar energia. Digerir os alimentos custa recursos e desvia o fluxo sanguíneo para onde é importante em situações de perigo. Os músculos. A motilidade gastrointestinal reduz e o trânsito intestinal é afectado. São comuns os casos de obstipação associados a stress e emoções, não fosse o órgão mais enervado que possuímos e cuja motilidade é condicionada por neurotransmissores que se vêm alterados em stress. No entanto, em situações de stress agudo intenso pode ocorrer perda de controlo sobre a musculatura lisa e largarmos involuntariamente alguma coisa... Fezes e urina. Tudo peso extra quando precisamos de fugir depressa. A saliva deixa também de ser produzida, a boca seca, e falar em público torna-se uma tarefa complicada. Eu que o diga...
Mas um dos órgãos mais afectados é obviamente o próprio cérebro. Um estado de vigília constante e actividade excitatória reduz a qualidade do sono, o que por si só já é um factor de stress extra. Para além do impacto que o cortisol exerce na redução dos níveis de melatonina, hormona responsável pelo nosso sono e regulação dos ritmos biológicos. A redução da dopamina e serotonina com o stress crónico aumenta o risco de depressão, com alterações no humor e maior irritabilidade. Tornamo-nos mais impulsivos e reactivos, a actividade do córtex pré-frontal diminui e aumenta no sistema límbico. Resultado? Menos cognição e mais reacção. A memória de curta duração é afectada pelo efeito do cortisol no hipocampo, região com grande quantidade de receptores de glucocorticoides e responsável pela consolidação de memórias. A longo prazo sabe-se que o cortisol efectivamente “mata” neurónios e leva à retração das suas conexões, as sinapses. Esqueces-te facilmente onde está a chave do carro, por momentos do PIN do cartão multibanco, ou do compromisso que agendaste ontem.
O stress também afecta a composição corporal, e o cortisol parece ser o principal responsável. O tecido adiposo visceral é particularmente sensível à sua acção pois apresenta uma densidade elevada de receptores de glucocorticoides, activados pelo cortisol e com um efeito quase que esquizofrénico no balanço lipídico. De uma forma imediata estimula a libertação de ácidos gordos através da hormone-sensitive lipase e aumento da densidade de receptores ß3-adrenérgicos. Mas ao mesmo tempo estimula enzimas de re-esterificação, lipogénese e a captação de ácidos gordos através da acção da lipoproteína lipase. No fundo, promove a liberação rápida de ácidos gordos para energia, criando condições para que mais se acumulem e as reservas energéticas possam ser estendidas para lidar melhor com um stress futuro.
Porque comemos bolachas Oreo quando estamos aborrecidos e stressados? E porque dificilmente conseguimos largar o pacote até lhe ver o fundo? Em momentos de elevado stress emocional a actividade do córtex é inibida e estimulada no sistema límbico. A recompensa é uma estratégia inconsciente de coping, e poucos estímulos são mais gratificantes do que a comida. Reduz efectivamente o stress. Em particular aquelas de elevado poder hedónico, ricas em açúcar e gordura, mas também outros alimentos com poder de reforço em memórias associadas e emoções. “Naquele momento eu comi isto e senti-me bem. Se comer agora vou ter a mesma sensação”. Isto é o córtex a “falar” com o sistema límbico, o centro das emoções e prazer. No fundo tudo aquilo que gostamos se resume a neurotransmissores e sinapses, na minha perspetiva pouco romântica da vida. Por exemplo, a serotonina é importante para o controlo de impulsos e diminuída pelo cortisol. A menor actividade promove comportamentos obsessivos e compulsivos em relação à comida, e não só. Também a ruminação de problemas e estados depressivos. O cortisol por si também estimula o apetite directamente através do NPY, um neurotransmissor orexígeno. Aliando os comportamentos hiperfágicos a um metabolismo propício à acumulação de gordura, temos a tempestade perfeita para pôr uns bons quilos em cima.
O stress influencia negativamente a nossa saúde a vários níveis. Não está só na nossa cabeça, ou mesmo começando por aí alastra-se a todos os sistemas biológicos. Não há um que escape ao stress crónico. Um assassino silencioso que lentamente nos vai debilantando, progressivamente menos capazes e mais gordos. Pouca atenção lhe é dada e o motivo é simples de entender. Não há uma pílula contra o stress. Não tem uma cura simplista. Ele é estrutural na nossa sociedade e nas nossas vidas, e não nos vamos livrar dele. Resta-nos aprender a lidar.
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