A nutrição como ciência refugia-se muitas vezes nos terrenos pantanosos da epidemiologia para estabelecer condutas que acabam por se tornar práticas clínicas e dogmas. Isto pela dificuldade ou impossibilidade em desenhar e concretizar os ensaios clínicos necessários para comprovar uma hipótese e inferir uma relação causa-efeito. O efeito de um nutriente ou alimento no desenvolvimento de uma doença crónica manifesta-se a longo prazo e a magnitude do impacto é certamente pequena, sendo necessários estudos proibitivamente longos e de dimensão irrealista, com custos exorbitantes que ninguém está disposto a pagar. Com epidemiologia não… é tudo bem mais fácil e rapidamente se estabelecem associações que abusivamente se especulam como causais. Esta questão é há muito debatida e existem critérios para inferir causalidade (Bradford-Hill) que muitas vezes são atropelados pela ânsia de um resultado mediático. São estes 1) força de associação, que é tanto maior quanto maior o risco relativo, aumentando a confiança numa relação causal, 2) consistência e coerência, com reprodução em várias amostras e por diferentes investigadores, 3) temporalidade (o efeito vem depois da causa), 4) gradiente biológico (a associação é maior quanto maior a exposição), e muito importante, 5) plausibilidade, uma base credível para a associação ou experimentação para comprovar a hipótese. Sem satisfazer estes critérios podemos fazer associações com o que nos apetecer, espúrias e meros artefactos de duas variáveis que seguem uma tendência comum. Por exemplo, bem conhecida é a associação entre o consumo de gelados na Austrália e os ataques de tubarão. Uma associação real, mas claramente não causal. O consumo de gelados aumenta no Verão, bem como a afluência às praias. Como este existem inúmeros exemplos que ilustram as armadilhas da epidemiologia em que muitos ainda caem, ou tropeçam propositadamente sabendo que lá estão.
Qualquer variável tem associações secundárias cuja sua influência não pode ser totalmente anulada. Vamos ao caso recente do ovo e doença cardiovascular. A associação estatística está lá, mas também entre o consumo de ovos e tabagismo, sedentarismo, baixa escolaridade, consumo de gordura saturada, e outros hábitos que também se relacionam com o aumento de risco cardiovascular. O ajuste não anula completamente o efeito conjunto e sinérgico destas variáveis, que não é necessariamente igual à soma das partes em isolado. Apenas uma associação forte permitiria segurança na inferência causal, o que não acontece. Falamos de um Hazard Ratio de 1,06. Um aumento de 6% na chance de doença por cada 1/2 ovo ingerido acima da média Americana (1/2 ovo por dia). Por outras palavras, um aumento de risco de 6% para quem consume 1 ovo por dia, ou 18% para quem consome 2 ovos por dia (como eu). Como o público é por norma iletrado em estatística, um título destes causa sempre grande buzz. Mas o que significa realmente? Não significa que por eu comer 2 ovos por dia tenho 18% de probabilidade de morrer do coração. Nada disso! Apenas que há um aumento relativo de risco em 18%, sobre o risco absoluto. Ora, o risco de um homem de 40 anos, não fumador, sem diabetes ou doença renal, HDL-c de 50 mg/dL, colesteremia de 180 mg/dL, e sem historial familiar de doença cardiovascular é de 3,3% (Framingham Score). Neste contexto, se comer 2 ovos por dia o risco passa para 3,9% e aumentou 0,6%. Se acham isto muito, experimentem ser sedentários ou o azar do vosso pai ter morrido de ataque cardíaco antes dos 50…
Para além da força de associação ser mínima, a relação entre os ovos e doença cardiovascular também não respeita outros critérios de causalidade. A consistência e coerência, já que nem todos os estudos epidemiológicos apontam nesse sentido, e os ensaios clínicos não corroboram a associação. A plausibilidade baseia-se na teoria do colesterol, que mesmo se verdadeira não é apoiada com base experimental. O consumo de ovos não está associado a um aumento da colesterémia nem deterioração do perfil lipídico. Na verdade, o colesterol alimentar tem muito pouco impacto nos níveis séricos, bem mais influenciados pelo consumo de gorduras saturadas, resistência à insulina, e hiperinsulinémia. E por tudo isto, continuarei a comer tranquilamente os meus 2 ovos por dia e a preocupar-me com o que é realmente importante. Mas agradeço a preocupação…
O mesmo exercício podemos fazer para a carne vermelha ou carnes processadas e risco de cancro colorectal, há 3 anos colocados no grupo 2A e 1 de substâncias carcinogénicas IARC, respetivamente. A par com o tabaco e alguns mutagénios conhecidos. A questão é que, independentemente da discutível coerência e plausibilidade, a magnitude de associação é ridícula comparativamente a carcinogénios inclusos nos mesmos grupos. Estimou-se que 50 g de carnes processadas por dia aumentam o risco de cancro colorectal em 18% (RR 1,18), e 100 g de carne vermelha o aumentam em 17 % (RR 1,17). Ora, só o facto de ser obeso (IMC > 30) aumenta o risco em 84% nos homens e 46% nas mulheres. Se a carne vermelha “causa” cancro, ser gordo muito mais. Além disso, e pondo mais uma vez os números no seu lugar, o risco de cancro colorectal num homem de 50 anos, sem pólipos ou historial familiar, que se exercita 5 vezes por semana, não fuma e tem um IMC entre 20-25, é de 0,16% a 10 anos. Ora, se comer 50 g de carnes processadas por dia ele aumenta 18%, passando para… 0,19%! Quase o mesmo que o formaldeído, também Grupo 1 IARC…
Estudos observacionais, transversais ou prospetivos (coorte), baseiam-se sempre numa análise retrospetiva aos hábitos alimentares por reportagem individual em questionários de frequência. Este método está sujeito a um grande viés. Não há outro, mas isso não faz dele bom. Apenas o melhor possível dentro dos constrangimentos deste tipo de estudos. Como sabem, as pessoas são péssimas a relatar a sua dieta. Propositadamente, inconscientemente, ou porque não se lembram do que comeram ontem sequer quanto mais a semana passada ou antes disso. Ou más a quantificar aquilo que ingerem realmente. Reportagem esta que por norma peca em defeito, mas independentemente do lado para que pende é um viés que não deve ser ignorado. São dados pouco fidedignos mesmo com os questionários validados disponíveis como ferramenta.
A epidemiologia nutricional também nos presenteia com descobertas maravilhosas, mas pouco plausíveis por mais tentadoras. Como por exemplo, que consumir 12 avelãs ou 3 chávenas de café por dia aumenta a expectativa de vida em 12 anos. Qualquer dia vende-se em capsulas pois não há fármaco melhor! E que se comer 1 laranja por dia vivo mais 5 anos. O que não irá acontecer porque eu como 2 ovos por dia, e cada um me tira 6 anos neste Mundo. Não é por acaso que tudo o que comemos está associado ao cancro, bem como o próprio acto de comer quando nos apetece e a incidência de cancro colorectal, e estar vivo é um factor de risco fortemente associado à morte. Estamos todos condenados.
É óbvio que a epidemiologia tem o seu valor e não deve ser desprezada. Quando as forças de associação são robustas e existe plausibilidade com suporte experimental. Nem estou a ver alguém realizar um ensaio clínico para verificar se fumar mata, ou se os para-quedas reduzem a incidência de lesões de impacto quando nos mandamos de um avião. Eu não seria voluntário para um grupo controlo. Mas em bom rigor, que faz muita falta hoje em dia, não permite levantar mais do que hipóteses que necessitam de confirmação e filtragem pelo bom senso e ética. “Ah mas assim não há orientações para nos guiar”. Bem-vindo ao território da ciência, com poucas certezas e muitas frustrações. Pessoas médias não existem. Apenas pessoas reais. E já agora, que se evitem manipulações em proveito do mediatismo ou de agendas pessoais, abusando da iliteracia geral sobre estatística. A nutrição não dá boas manchetes…
Referências:
JAMA. 2019;321(11):1081-1095
JAMA. 2018;320(10):969–970.
Am J Clin Nutr. 2017;105(6): 1462-1473.
BMJ. 2017;359:j5024.
Am J Clin Nutr. 2013: 97(1): 127–134
Bao Y, et al. Int J Cancer. 2012.
J Clin Oncol. 2009 Feb 10;27(5):686-93.
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