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Devemos ou não comer carne vermelha? O consumo está associado ao cancro?

Eu como carne vermelha, cortes mais magros preferencialmente, com uma frequência média de 2-3 vezes por semana. Existirão semanas em que como mais, outras em que nem a como. E sinceramente estou muito confortável com isso apesar da alegada relação com o risco de cancro colorectal. Que até levou à inclusão da carne vermelha no grupo 2A de substâncias carcinogénicas IARC, e as processadas no grupo 1, de maior risco, a par do tabaco e mutagénios conhecidos. Claramente exagerado quando comparada a magnitude de risco. Enquanto o consumo de carnes processadas eleva o risco de cancro colorectal em 18%, fumar aumenta o risco de cancro pulmonar em 1000%. Não é comparável. Nada de bom vem do consumo destes alimentos, mas não é uma sentença de morte.


A relação da carne vermelha com o cancro é puramente associativa, com base em estudos observacionais, pois é praticamente impossível desenhar e concretizar os ensaios clínicos necessários para comprovar a hipótese e inferir uma relação causa-efeito. O efeito de um nutriente ou alimento no desenvolvimento de uma doença crónica manifesta-se a longo prazo e a magnitude do impacto é certamente pequena, sendo necessários estudos proibitivamente longos e de dimensão irrealista. Com epidemiologia não… é tudo bem mais fácil e rapidamente se estabelecem associações que abusivamente se assumem como causais. Esta questão é há muito debatida e existem critérios para inferir essa causalidade (Bradford-Hill). São estes 1) força de associação, que é tanto maior quanto maior o risco relativo, aumentando a confiança numa relação causal, 2) consistência e coerência, com reprodução em várias amostras e por diferentes investigadores, 3) temporalidade (o efeito vem depois da causa), 4) gradiente biológico (a associação é maior quanto maior a exposição), e muito importante, 5) plausibilidade, uma base credível para a associação ou experimentação para comprovar a hipótese. Sem satisfazer estes critérios podemos fazer associações com o que nos apetecer, meros artefactos de duas variáveis que seguem uma tendência comum. Por exemplo, bem conhecida é a associação entre o consumo de gelados na Austrália e os ataques de tubarão. Uma associação real, mas claramente não causal. O consumo de gelados aumenta no Verão, bem como a afluência às praias. Como este existem inúmeros exemplos que ilustram as armadilhas da epidemiologia em que caímos, ou tropeçamos propositadamente para justificar os nossos preconceitos.

A relação entre a associação do consumo de carne vermelha e o cancro colorectal não satisfaz todos os critérios de causalidade. A associação é fraca em magnitude e não é consistente, com vários estudos que falham em encontrar essa relação. Não querendo aqui entrar nas limitações metodológicas e variáveis secundárias que confundem estes trabalhos, vou-me focar apenas na relativização do risco. Que no fundo é a função dos estudos epidemiológicos - avaliar risco, e nada mais. E na percepção exagerada do perigo quando se diz “o consumo de apenas 100 g de carne vermelha por dia em média aumenta o risco de cancro colorectal em 17%”. Esta alegação resulta de um risco relativo, conceito difícil de entender para o público em geral. Trata-se apenas de um aumento do risco em 17%, sobre o risco absoluto. Pondo os números no seu lugar, o risco de cancro colorectal num homem de 50 anos, sem pólipos ou historial familiar, que se exercita 5 vezes por semana, não fuma e tem um IMC entre 20-25, é de 0,16% a 10 anos. Ora, se comer 100 g de carne vermelha por dia ele aumenta 17%, passando para… 0,19%! Totalmente irrelevante. E só o facto de ser obeso (IMC > 30) aumenta o risco em 84% nos homens e 46% nas mulheres. Se a carne vermelha “causa” cancro, ser gordo muito mais.


O cancro é assustador. Sentir que conhecemos os seus factores causais dá a impressão de controlo. De facto existem factores de risco, mas também um viés para exagerar a sua importância. O chamado “white hat bias”, reforçado pela vontade inconsciente de confirmar preconceitos. Como define Cope e Allison (2010), “um viés que leva à distorção da informação baseada na evidência, ao serviço do que pode ser considerado um fim nobre”. Mas inválido. A epidemiologia e os estudos observacionais têm o seu valor, que não deve ser menosprezado. Na avaliação de risco da exposição, que tem de ser interpretado ao nível do seu impacto real. Um aumento relativo pequeno de um risco que já é mínimo torna-se irrelevante. Progressivamente mais importante à medida que o risco absoluto sobe. É o caso da associação entre o consumo de carne vermelha e o cancro colorectal.


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