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Foto do escritorSérgio Veloso

A história e o culto das dietas

Atualizado: 28 de nov. de 2022


A obesidade e o excesso de peso são uma pandemia em crescendo que se acentuou nos últimos 50 anos, mas que está longe de se tratar de uma preocupação exclusiva da modernidade. Actualmente, a OMS estima que mais de 600 milhões de adultos no mundo sofram de obesidade, e quase 400 milhões de adolescentes e crianças. O último relatório europeu aponta para uma prevalência global de excesso de peso, IMC > 25, acima dos 50%, e de obesidade a rondar os 25%. Apesar das limitações que reconhecemos ao IMC, de uma perspectiva epidemiológica não deixa de ser um bom indicador do estado da população. Em Portugal, o mesmo relatório aponta para prevalências próximas da média europeia. O mundo está "gordo", e a tendência não é de melhoria.


A associação entre a obesidade e doença é reconhecida, apesar de perigosamente negada por alguns. Pura cegueira ideológica. Está estabelecido um aumento do risco de doença coronária, hipertensão, insuficiência cardíaca, diabetes tipo II, alguns tipos de cancro, e outros, associando-se a uma redução da esperança de vida em 4 anos. Na verdade, a American Medical Association e a World Obesity Federation definem obesidade como doença, um “processo patológico crónico”. Já a OMS é mais conservadora e não subscreve a classificação, definindo obesidade como “um processo deletério de acumulação de gordura que representa um elevado risco de saúde”. Mas no essencial há consenso. O risco é real, com uma probabilidade aumentada de desenvolver co-morbilidades graves e mortalidade precoce.


A preocupação com a saúde está longe de ser a única, ou até a principal, motivação para alguém querer perder peso. Nem são apenas os que sofrem do excesso que o fazem. A sociedade criou padrões estéticos e de personalidade que foram mudando ao longo do tempo, exercendo uma grande pressão a quem não encaixa no “ideal”. Uma espécie de hierarquia informal de que somos excluídos se nos desviamos, gerando sentimentos negativos de culpa, vergonha e impotência, explorados por toda uma indústria ávida pelo lucro e indivíduos à procura de notoriedade. Passam-nos a ideia de que podemos ser mais magros, atraentes, joviais, e amados se fizermos o que dizem, se comprarmos o que vendem. E esta manipulação emocional em nada mudou nos últimos dois séculos.


Não pensem que daqui sairá um artigo anti-dieta. Nada disso. Mas a exploração desta fraqueza está na origem de muitos enganos e mitos associados às dietas. As pessoas escolhem acreditar no que lhes oferece uma solução rápida e prática para o problema, seguindo rituais que até podem não entender, mas com que se identificam. E as redes sociais vieram tornar o fenómeno ainda mais evidente, bombardeando-nos com a informação que queremos ouvir, e não a que precisamos de ouvir. Escolhemos os grupos a que pertencemos e as pessoas que seguimos de acordo com os nossos próprios preconceitos. A verdade torna-se relativa. Não o reflexo da realidade, mas o reforço das nossas próprias crenças. Não é sobre mentir. Ninguém mente sem conhecer a verdade, e produzir “treta” ou inventar “fad diets” não requer tal convicção. Serve apenas para impressionar e oferecer uma solução para um problema comum, que destaca quem a detém. Por dinheiro, ou simplesmente para ser “bajulado”.



Quando tudo começou


Não sabemos se nos primórdios da civilização existiam padrões corporais favorecidos, mas esculturas preservadas de há milénios até aos dias de hoje sugerem uma associação entre gordura corporal e fertilidade na mulher. Numa época marcada por ciclos de abundância e fome, a gordura corporal era como que um seguro de sobrevivência. A esperança de vida de uma mulher era demasiado curta para que os problemas crónicos que se associam à obesidade se pudessem sequer manifestar, e o sucesso reprodutor seria uma pressão selectiva bem mais forte. Nem teriam as preocupações estéticas e pressões sociais que surgiram mais tarde, quando a civilização se viu com mais tempo livre para pensar nessas coisas. Já não tinham de se preocupar em caçar e colher alimentos, ou em fugir de um urso para não ser comido.


Se esse era um perfil favorecido nos primórdios civilizacionais, tudo mudou na antiguidade clássica grega. Ou pelo menos surgem as primeiras evidências históricas. A obesidade era encarada não só como uma decadência do corpo, mas também da mente. O conceito de “diaíta”, palavra que dá origem a “dieta”, é alargado ao estilo de vida e não se restringe à alimentação. Os mais abastados passavam horas a praticar exercício, e para os pobres a obesidade não era uma preocupação. Hipócrates foi o primeiro a associar o excesso de peso à doença, recomendando uma dieta restrita, exercício, e indução de vómito como tratamento. O pai da medicina foi também da bulimia, e de uma prática que se manteve comum entre a nobreza durante séculos. Um outro médico grego, Soranus de Ephesus, recomendava chás e laxantes para perda de peso. Mas na Grécia antiga, o padrão ideal não era o de magreza que marcou o séc. XIX e XX, mas de um corpo musculado nos homens e formas nas mulheres. Manifestado nas esculturas dos deuses gregos que representavam o modelo da perfeição. Que de certa maneira se manteve nos homens, mas extremou nas mulheres. Na verdade, o ideal de beleza centrava-se no corpo do homem e as formas da mulher eram até consideradas pouco harmoniosas. Feias. Em algum momento da História esta visão mudou.


Até ao Renascimento os padrões corporais e o comportamento alimentar foram muito condicionados pela religião e Igreja. Uma época negra em que pouco se evoluiu civilizacionalmente. A glutonia era considerada um pecado mortal, e o corpo um veículo conspurcado que poluía o espírito. O jejum visto como uma penitência que aproximava o Homem de Deus. Momentos de revelação relatados por Santos da Igreja, que poderiam não ser mais do que alucinações provocadas pela “anorexia mirabilis”, um estado mental alterado por privação prolongada de alimento. Para as mulheres, vistas quase como a encarnação do pecado e tentação, o jejum era uma forma de purificação e prova de auto-controlo para com os prazeres carnais. O sofrimento penitente sempre esteve associado à purificação, e não é de estranhar que seja um comportamento de tão fácil aceitação entre as pessoas. Há um certo romantismo e mística no jejum, que voltou como sabemos nos anos mais recentes. Como irão ver, as modas alimentares são cíclicas e já se inventou quase tudo o que há para inventar.


O primeiro livro publicado sobre dietas surgiu provavelmente em 1558, “A Arte da Longevidade”, por Luigi Cornaro, um italiano obeso que nos seus 40 anos decidiu perder peso numa dieta com 350 g de comida por dia e 400 ml de vinho. Que estranhamente viveu mesmo quase até aos 100 anos. Em 1614, um outro italiano, Giacomo Castelvetro, publica “As Frutas, Ervas e Vegetais de Itália”, onde critica a dieta inglesa, cheia de carne e açúcar, em favor da alimentação tradicional italiana. Pode dizer-se que foi a origem do que se veio a chamar “Dieta Mediterrânea”, mais tarde glorificada por Ancel Keys já no século XX. Em 1730, Gorge Cheyene escreve “O Método Natural de Curar Doenças do Corpo”. Também ele obeso, seguiu uma dieta exclusiva de leite e vegetais, mas recuperou todo o peso quando voltou à sua alimentação regular. Tornou-se vegetariano, considerando que todas as doenças nervosas que nos afectam derivam de comermos animais confinados e ansiosos. Que não existe diferença entre comer um animal e um ser humano.



A Era Vitoriana e século XIX


Mas o conceito moderno de dieta e muitos dos mitos que a envolvem tiveram a sua origem no século XIX, na Era Vitoriana e apogeu do Império Britânico (1820-1914). Uma época marcada por prosperidade económica, pela Revolução Industrial, e por importantes avanços científicos. Uma sociedade estratificada em classes, e de certa forma o corpo e o apetite reflectiam a posição social e a ambição pessoal. Estar gordo era um privilégio dos ricos que expressava poder e autoridade. Mas ao mesmo tempo surgia evidência dos efeitos nefastos que a obesidade poderia ter na saúde, das autópsias que se realizavam cada vez mais frequentemente nessa época e que impulsionaram o avançar da medicina. A corpulência, palavra que se usava na altura para obesidade, era causa apontada de doenças cada vez mais comuns.


A Era Vitoriana foi muito influenciada pelo pensamento de Thomas Malthus e pela sua teoria catastrófica do crescimento populacional. Em 1798 publica “Um Ensaio aos Princípios da População”, onde vaticinava uma crise provocada pela incapacidade de produzir alimento suficiente para uma população em crescimento exponencial. A sombra da escassez e desastre económico pairava sobre o século XIX, colocando a sociedade num dilema. A imoralidade de comer desenfreadamente e contribuir para o esgotamento de recursos, e o medo de ser frágil demais para sobreviver à catástrofe Malthusiana. Uma dicotomia que polarizou a opinião da época e extremou o comportamento alimentar.


Foi também por esta altura que surgiram os “jejuadores profissionais”, autênticas atracções da época que queriam demonstrar a possibilidade de viver quase sem alimento, ou apenas com alguns chás ou infusões como sustento. Dispostos a revelar “o segredo” em troca de dinheiro. Uma atitude com que encontramos grande paralelismo hoje. Alguns desses “con artists” foram até desmascarados na época, não comendo em público mas compensando à noite que nem alarves o que se privaram durante o dia. Surgiam à procura de fama e dinheiro, em antagonismo directo com o Império que queria homens fortes, capazes para a guerra e de sobreviver a condições extremas. O comportamento alimentar era também um posicionamento social e político.


A British Vegeterian Society foi criada em 1846 por um grupo de médicos liderado por John Mayor, em oposição ao regime Vitoriano dominante baseado em carne e muito açúcar vindo das colónias. Acreditavam que o vegetarianismo era uma opção alimentar mais saudável, mais sustentável e moral. Argumentos que perduram na actualidade. Foi por essa altura que experiências com animais provaram que também sentiam dor, tal como nós. Pela maior sustentabilidade, o vegetarianismo poderia ser a resposta para a catástrofe de Malthus. Além disso, tinha uma forte componente espiritual pelo paralelismo com a dieta do Éden, muito de base vegetal. Não é por acaso que comer carne é pecado em certas celebrações religiosas. No fundo, a moralidade vem da comida. Da cedência à tentação de Eva que comeu da árvore proibida, e da lealdade de Adão que colocou a sua mulher à frente de Deus ao comer também. A pena para a humanidade foi a consciência, moral, e a vergonha do seu corpo nu.


E foi também na Era Vitoriana que as celebridades se tornaram modelos da sociedade nos seus hábitos alimentares mais descabidos. Tal como hoje. E o mais mediático era o poeta romântico Lord Byron, um “sex symbol” do século XIX que todos queriam imitar. E um idiota chapado no que toca à alimentação. Para perder peso passava longas horas e até dias em jejum para depois comer compulsivamente ao jantar. Cobria-se com várias camadas de roupa para suar e perder peso. E é também da sua autoria a dieta do vinagre, bebido antes das refeições para reduzir o apetite e “dissolver a gordura”. Pensavam que era uma invenção recente com base científica? Nada disso. O Byron já fazia ainda o teu trisavô não tinha nascido. À época existe pelo menos um caso fatal relatado, provavelmente por levar ao ridículo do exagero. Apenas lesões gastroesofágicas e erosão do esmalte dentário são típicas desta prática, que não demonstra evidência de eficácia para perda de peso. Apenas um estudo japonês favorável, patrocinado por um produtor de vinagre.


As mulheres sempre foram um alvo da cultura da dieta e pressão social para encaixar num padrão. Ao contrário dos homens, a “corpulência” nunca foi vista como sinal de poder, ambição e estatuto. Comer pouco e jejuar eram práticas bem aceites como sinal de contenção, auto-controlo, pureza, e fragilidade numa sociedade patriarcal. No fim do século XIX, o modelo de mulher era personificado na Imperatriz da Áustria, Elisabeth von Wittelsbach, também conhecida como Sisi, e na sua cintura de 40 cm que se esforçava para manter com exercício, laxantes e eméticos. A Sisi era anorética, mas mesmo assim o modelo de mulher perfeita. As tendências corporais extremaram-se no século XIX, passando de uma forma “ampulheta”, com anca e busto mais largos e cintura estreita, espartilhada, para a magreza total.


Se acham que existe gordofobia hoje, não imaginam como eram tratados os obesos naquela altura. Com a magreza como sinónimo de beleza, moralidade e pureza, alguns autores sugeriam que os obesos deveriam ser presos. Os mais espirituais destinavam-nos a arder no Inferno. Eram gozados e ridicularizados abertamente sem condescendência. Reconhecimento só nos espetáculos circenses em que eram a atracção principal. Por exemplo, Leonard Williams, médico norte-americano, acusava as mulheres de engordarem os maridos para os tornarem dóceis. Amelia Summerville, escreve no seu livro “Porque Ser Gordo?” que preferia morrer a ser gorda. Eram os próprios cientistas os bullys, pois, segundo se dizia, os gordos “eram engraçados e tinham uma intrínseca falta de dignidade”.



Foi na segunda metade do século XIX que os primeiros livros populares de dieta para perda de peso começaram a aparecer. Em 1860 um coveiro inglês, William Banting, publica um relato do método que inventou para conseguir perder 30 Kg – “Letter on Corpulence”. A publicação ganhou tal fama que a expressão “I’m banting” tornou-se sinónimo de “estou de dieta”. Foi a primeira dieta “low-carb”, à base de carne, alguns vegetais e vinho. Na verdade, a dieta de Banting era bem sensata comparada com outras que surgiram no século XIX. A dieta da ténia é uma delas, em que a pessoa comia ovos de ténia para que o parasita se desenvolvesse no intestino. Temos também a dieta da areia, em que as pessoas ingeriam areia esterilizada para ajudar na digestão e detoxificar o organismo. Se as aves comem pedras, e se os bebés a tentam por na boca a toda a hora, nós seres racionais deveríamos fazer o mesmo. Uma outra dieta famosa que perdurou nas décadas foi a “20 min Standing”, em que depois das refeições tínhamos de ficar 20 min parados de pé para acelerar o trânsito intestinal e facilitar a digestão. No final do século XIX surge também o “Fletcherismo”, um movimento a que o próprio Horace Fletcher chamou de “culto” e que contava com figuras proeminentes como Mark Twain, Kafka e Kellogg. Basicamente podia-se comer de tudo desde que se mastigasse cada garfada pelo menos 100 vezes. Fletcher era um empreendedor e negociante de arte que precisava de perder peso, numa época em que as seguradoras já calculavam os prémios penalizando o peso corporal. E assim se virou o século.


Tendo falado de Kellogg, é relevante também mencionar o seu contributo para a definição do padrão alimentar americano, e do mundo moderno. Tudo começou nas últimas décadas do século XIX, numa época em que o pequeno-almoço das famílias americanas era distinto do actual, com ovos, bacon, salsichas e outras indulgências bem longe do que é considerado saudável, mesmo na altura. Entre os que partilhavam esta opinião estava um jovem médico, John Harvey Kellogg, que associava a alimentação dessa época ao aumento dramático da prevalência de distúrbios gástricos. Kellogg defendia que a alimentação era o alicerce de uma saúde robusta, e pioneiro na associação entre os nossos hábitos dietéticos e a doença. Abre um sanatório em Battle Creek, uma espécie de spa a que chamou “The Battle Creek Sanitarium March”. Aqui promovia uma alimentação diferenciada em que os cereais foram introduzidos, e o sal e açúcar totalmente abolidos. Em 1894, John Kellogg conheceu um empresário em Denver que tinha inventado um cereal crocante à base de trigo, inspiração para uma versão de pequeno-almoço no seu sanatório. Flocos de cereais de trigo tostados, sem adição de açúcar, aos quais chamou de “granola”.


John era médico e dedicava-se afincadamente à saúde dos seus pacientes, com pouco tempo para gerir um negócio de cereais em crescendo, expandido muito além do pequeno sanatório. O seu irmão Will ficou à frente do negócio e da produção da granola, fiel aos princípios que John Kellogg defendia – o mais natural possível, e sem açúcar. Por sugestão de Will foi criada uma versão à base de milho com grande sucesso, registada mais tarde como “Sanitas Tosted Corn Flakes”. Um dos clientes do sanatório de Kellogg’s foi Carl Post, que experimentou a tal granola e ficou fascinado com o conceito e sabor. Post era um homem de negócios e sabia que o açúcar ia melhorar o produto. Iniciou a sua própria produção, criando uma empresa com o seu nome, Post, e que viria a ser a principal rival da Kellogg’s nos anos seguintes. Will viu a concorrência a ganhar terreno e não cruzou os braços. Durante uma viagem do irmão à Europa no âmbito de um congresso científico, Will Kellogg comprou quilos de açúcar e adicionou aos seus cereais. Os clientes do sanatório gostaram, e muito.


Quem não gostou foi o John quando regressou e viu o seu conceito pervertido pelo próprio irmão. Separaram-se, e Will abre a sua empresa de processamento de cereais, a nossa conhecida Kellogg’s. Pelo menos duas disputas em tribunal tiverem lugar, com Will a sair sempre por cima no litígio. Daí foi uma caminhada galopante até à posição que ocupa hoje como um dos maiores produtores de cereais processados do Mundo, dominando uma fatia significativa do mercado. Nos anos 70 a Kellogg’s representava 45% do total de vendas dos EUA, perdendo quota à medida que outras marcas mais baratas e as linhas brancas dos retalhistas iam surgindo. A Kellogg’s, e também a C Post, mudaram o paradigma do pequeno-almoço americano, que se disseminou pelo mundo. Cereais com leite, e carradas de açúcar. Um assunto que vem a discussão pública mais tarde, nos anos de 1980.



O século XX


O século XX começou bem até, mas perdeu-se no entretanto. Em 1918, o médico Lulu Hunt Peters publica o seu livro “Dieta e Saúde: A Chave das Calorias”, que vendeu milhões de cópias e foi o primeiro best-seller do género. Peters defendia a contagem de calorias, método que ele próprio usou para perder peso, e que ser gordo era pecado. Estragou tudo. O auto-controlo seria a chave para ser magro. Mesmo sem forma de calcular com rigor o gasto energético naquela altura, a dieta de 1200 kcal que defendia não tinha como falhar desde que a conseguissem cumprir. Foi o primeiro livro de dietas para o público em geral com algum rigor científico. O mesmo não podemos dizer de William Hay, um médico americano que nos anos 30 preconizava a classificação dos alimentos em alcalinos, ácidos e neutros, alegando que não se deveriam juntar na mesma refeição. Basicamente as proteínas eram acídicas, os amidos, os vegetais e frutas alcalinos. O resto neutro. Onde é que já ouvimos isto? Foi o nascimento da dieta alcalina.


As mudanças mais dramáticas na cultura de dieta surgiram após a I Guerra Mundial, agora com os EUA na liderança. Mas o ideal feminino de magreza permanece e até acentua, agora quase masculino, sem curvas. A indústria tabaqueira viu aqui todo um novo mercado e passou a publicitar o tabaco para as mulheres perderem e manterem o peso. A Lucky Strike tinha o slogan “fuma um Lucky em vez de comer um doce”. Na altura até os médicos defendiam que era um hábito saudável, ainda sem se conhecerem os malefícios do tabaco. E se o tabaco emagrecia, nada melhor do que uma depressão. A Grande Depressão de 1929, que mudou o comportamento alimentar na sociedade americana. Mais uma vez, comer em excesso e ser gordo tornou-se imoral quando muitos morriam à fome. Paradoxalmente, a necessidade de ajudas para emagrecimento e milagres dietéticos tornou-se ainda mais evidente. Um dos poucos mercados que cresceu durante esse período. Prioridades. Além da Hay Diet, outros regimes idiotas surgiram nos anos 30. A Beverly Hills Diet, a dieta da toranja, da limonada, a da banana e leite. Os anos 20-30 do século XX foram provavelmente os mais extremos, com o corpo perfeito da mulher idealizado numa magreza severa, esguio e pouco feminino sem anca e busto. Os distúrbios alimentares disparam e a anorexia passa a ser tema entre a comunidade médica.


Em 1933, um médico francês define pejorativamente celulite numa revista sensacionalista como “uma combinação de água, resíduos, toxinas e gordura que formam uma mistura má”. Referia que se tratava de um problema feminino em exclusivo, diferente da gordura e quase impossível de perder. Foi a primeira vez que o termo celulite se associou à estética, numa altura de afirmação dos padrões corporais femininos de magreza extrema. Décadas antes a celulite era considerada normal. Sempre existiu na mulher. Por essa altura em França começaram a surgir os primeiros tratamentos dietéticos, massagens e exercícios específicos para a celulite. Que chegam aos EUA mais tarde, depois da Vogue publicar em 1968 o artigo “Celulite: a gordura que antigamente não se podia perder”. Estava instalado o caos.


Veio a II Guerra Mundial, e o mundo mudou. Milhões de jovens americanos foram para a Europa e Ásia combater, e as mulheres para as fábricas colaborar no esforço de guerra. Com os homens fora, as mulheres ganharam importância na sociedade e o corpo masculinizado sem formas saiu de moda. As curvas estavam de volta. Em 1942 o governo americano racionou alimentos como a carne, queijo, enlatados, açúcar, café e leite. Era pouco patriótico comer mais do que a porção que te era destinada, e errado não comer tudo o que estava no prato. Ancel Keys viu a oportunidade para estudar o efeito da privação alimentar na sua Minessotta Starvation Experiment (1944-1945), onde submeteu homens jovens e “voluntários” normoponderais a uma restrição energética severa (55%) durante várias semanas. Só para ver o que lhes acontecia. “Voluntários” porque eram objectores de consciência que recusaram partir para a guerra, e condenados a trabalho comunitário. A escolha foi entre entrar no estudo ou a prisão. Foi uma experiência de tal forma dolorosa que um dos participantes decepou um dedo só para sair do estudo. Keys concluiu que a restrição energética de facto levava à perda de peso, Sherlock!, cerca de 25% do inicial mas a um ritmo brando que permitia sobrevivência por muito tempo mesmo quando as reservas de gordura eram baixas. À custa de grande ansiedade, pensamento constante e obsessivo em comida, e muito sofrimento.


A guerra terminou e o final dos anos 40, início dos anos 50 foi um período revolucionário também para o mundo das dietas e imagem corporal. As mulheres ganharam estatuto social e as formas mais femininas estavam de volta. Cinturas estreitas e ancas largas, esplanadas em ícones como Marilyn Monroe e Liz Taylor. Começou também a ser mais comum encontrar lojas com roupa “plus size”, para adultos e agora também para crianças. Mas nem assim a maldade para com os obesos terminou. “Ninguém ama uma rapariga gorda” era um anúncio a bolachas na época. Deus não aprovava a obesidade, e livros como o “Pray Your Weight Away” ou “I Prayed Myself Slim” foram lançados ao público. Se a glutonia era pecado, a fé ajudaria a perder peso.


Ancel Keys ganhou notoriedade na época e influenciou em muito as orientações nutricionais nos EUA. Defendia que a dieta rica em gordura saturada causava doença cardiovascular, e o mercado respondeu com versões “light” dos produtos convencionais. Embora sendo acusado de fraude no seu “7-Countries Study”, onde encontra uma associação entre o consumo de gordura saturada e doença coronária em sete países escolhidos a dedo, o trabalho marcou toda uma época de orientações nutricionais para a redução do consumo de gordura e adopção de um padrão alimentar mais Mediterrâneo. Mas apesar disso, entre os anos 50 e 60 a obesidade subiu 15% nos EUA. Período em que o método mais em voga para perder peso era a contagem de calorias, também aqui sob influencia de Keys e da sua “Minessotta Starvation Experiment”. Comes menos do que gastas, perdes peso. Ancel Keys era um cientista, apesar da sua conhecida arrogância e egocentrismo.


Em meados dos anos 60 o padrão corporal ditado pela moda voltou a mudar para magreza e linhas direitas, mais masculinas. Em contracorrente com as orientações nutricionais vigentes, Herman Taller publica em 1961 “As Calorias Não Contam”, livro que defende a restrição de hidratos de carbono e dieta cetogénica como solução para a perda de peso. Começa a vender suplementos que não eram mais do que óleos em cápsulas, e foi condenado por fraude em 1967. Na mesma época, duas outras dietas se tornaram populares. A “The Drinking Man’s Diet”, também ela tendencialmente low-carb mas com um Martini a acompanhar todas as refeições. E a “Dieta da Bela Adormecida”, popularizada por Elvis Presley, em que se tomavam comprimidos para dormir durante dias. A dormir não se come. Genial. A década ficou também marcada pelo reconhecimento oficial de que o tabaco causava cancro. Uma bofetada após tantos anos a publicitá-lo para perder peso.


Apesar de tantas dietas, a obesidade continuava a aumentar. No fim dos anos 60 e início dos 70 começaram a aparecer os planos de refeições pré-feitas, e mais dietas milagrosas bem criativas. Em 1963 surge a Weight Watchers, um dos primeiros e mais reconhecidos grupos de autoajuda, com reuniões semanais que assentava em quatro pilares de base: alimentação saudável, exercício, mudança comportamental e suporte social. Pilares esses que são ainda os alicerces dos programas com maior suporte científico. Mark Hughes funda a Herbalife em 1980, também com a dinâmica de grupos que conhecemos. Suicida-se 20 anos mais tarde, mas a companhia prevalece com um novo administrador trazido da Disney. Na verdade, a Herbalife não teve nem tem grande influência na definição das tendências. Não acrescentou nada de novo, embora seja atualmente uma das maiores empresas no sector dos suplementos alimentares e merecer a nota. E também das mais controversas pelo seu modelo de negócio, produtos sobrevalorizados num mercado multinível fechado, a versão legal de um “esquema pirâmide”, e estratégias de venda muito emocionais que prometem mundos e fundos. Um outro lado do culto das dietas.


Mas marcante para a década de 70 foi a publicação em 1972 do “Dr. Atkins’ Diet Revolution”, não a primeira dieta cetogénica como vimos, praticamente isenta de fontes de hidratos de carbono, mas a que mais influência terá tido. Ao contrário das anteriores, transitórias até perder o peso pretendido, Robert Atkins dizia que era possível manter esta dieta para o resto da vida. O regime tornou-se tão popular que 1 em cada 10 americanos o seguiam nos anos 70, apesar da controvérsia entre a comunidade médica que na generalidade era contra dietas ricas em gordura. A doutrina de Ancel Keys era a dominante no meio académico e científico. A Dieta de Atkins tornou-se uma marca reconhecida internacionalmente. Tudo isto apesar de já na altura existir evidência suficiente de que todo aquele peso e volume perdidos ao ínicio era água e não gordura. De que os hidratos de carbono não eram o problema, mas sim o aporte calórico excessivo.


Robert Atkins vê publicado em 2002 um remake do seu livro, ainda com mais sucesso do que o primeiro. Estima-se que 1 em cada 6 americanos por essa altura tenha seguido a sua dieta em algum momento, e largos milhões em todo o mundo. Mais uma vez, Atkins cria a dieta para resolver um problema que era seu. Era obeso, e conseguiu perder peso com o regime que “inventou”. Inspirado em versões anteriores de dietas low-carb, e especialmente num artigo de 1963 publicado no Journal of the American Medical Association por Alfred Pennington, associando o aumento da prevalência de obesidade nos EUA ao consumo de açúcar e hidratos de carbono em geral. O sucesso consigo próprio fez com que experimentasse o regime com os seus doentes. Atkins era médico em Manhattan, onde viveu até ao fim da sua vida, em 2003. Morreu das sequelas de uma queda à saída da sua casa, depois de vários dias em internamento e com mais de 100 kg de peso. Segundo se diz, só 30 kg foram ganhos durante a hospitalização e resultado da retenção de fluídos característica de quando se transita novamente para o consumo de hidratos de carbono.


Mas a prevalência de obesidade continuava a subir, na América e no mundo, e o foco muda para o fitness nos anos 80. Começou-se a correr e a fazer ginástica com a Jane Fonda. Apareceram os primeiros gurus do fitness, como Jack Lalanne, Bill Phillips e outros que muito contribuíram para mitos que persistem até hoje. Como o cardio em jejum por exemplo. Nesse período, a pressão da comunidade médica teve resultados e abafou por uns tempos as ideias revolucionárias de Atkins. O low-fat estava de volta. O padrão corporal da época passou a ser o modelo mais atlético, com curvas e tonificado. Em 1988, Operah Winfrey mostra no seu programa um pedaço de gordura com 30 kg, que representava o peso que perdeu com uma dieta líquida hiperproteica. Viralizou no momento, apesar de ela ter recuperado grande parte do peso perdido pouco tempo depois. Um minuto chocante de televisão que impactou nos americanos. A gordura era “nojenta”.


Na mesma década começou a ser dada mais atenção ao consumo de açúcar, particularmente elevado nos refrigerantes e cereais de pequeno-almoço. O problema era de tal maneira grande que Jean Mayer, reconhecido especialista em Nutrição de Harvard, recomendou que os cereais de pequeno-almoço fossem vendidos em confeitarias e nas zonas destinadas aos doces nos supermercados. Eram produtos que apresentavam mais de 50% de teor de açúcar. Para além de Meyer, também os dentistas alertavam para cáries dentárias que cada vez mais encontravam nas crianças, chegando mesmo a enviar dentes podres a quem podia fazer a diferença – os políticos. A pressão teve resultados, e em1985 a quantidade de açúcar nos cereais começou a baixar. desde os anos 60, a opinião dos especialistas dividia-se sobre qual seria mais prejudicial – a gordura saturada ou o açúcar. De um lado tínhamos Ancel Keys, do outro o médico John Yudkin. Keys tinha mais peso mediático e influência nas políticas públicas. Mas como em quase tudo quando existem duas opiniões polarizadas, a verdade andará algures pelo meio e não existe um culpado único. Os americanos engordavam porque estavam a comer mais e com vidas mais sedentárias. Verdade que se aplica a todo o mundo modernizado.


No início dos anos 90, a prevalência da obesidade era o dobro do que nos anos de 1950, apesar de toda a oferta de estratégias milagrosas para emagrecimento. O padrão corporal manteve uma tendência de magreza, mais acentuada do que nos anos de ouro do fitness, e a dieta de Atkins voltou a ser moda em choque directo com a pirâmide alimentar americana que surge em 1992. Barry Sears cria a sua “Zone Diet”, defendendo que todas as refeições deveriam obedecer a uma proporção fixa de hidratos de carbono, proteína e gordura (40:30:30). O fitness continua a crescer, com vários ginásios e health clubs a surgirem nos anos 80-90. Redes sociais ainda não existiam e a Internet estava na sua infância. Alguns fóruns de discussão foram aparecendo, mas a comunicação ainda se fazia maioritariamente pelas revistas, televisão, livros e radio.



O novo milénio


O novo milénio trouxe a revolução digital. A discriminação para com os obesos começa a ser discutida mais intensamente e comparada à racial. Na verdade, os números apontavam até para um impacto maior no meio laboral. Alguns insurgem-se também contra a cultura de dieta. Citando o psiquiatra Thomas Szasz décadas antes, “costumávamos ir atrás dos judeus, homossexuais, malucos e drogados. Agora são os gordos. Impomos-lhes dietas como parte de uma ordem moral”. Em 2013 a American Medical Association reconhece a obesidade como doença, permitindo que os seguros comparticipassem a cirurgia bariátrica. Até essa altura era considerada uma questão estética. No início do século XXI, as dietas mais proeminentes eram a de Dukan e South Beach, ambas hiperproteicas, Paleo e low-carb nas suas várias formas. Os detox com sumos também começaram a aparecer cada vez mais, ou reaparecer, como estratégias de purificar e emagrecer.


Um bom exemplo da dissonância cognitiva nestas dietas é de facto a Paleo. Apesar de ter sido popularizada no início deste século por Loren Cordain, com o seu pico em 2013, o conceito vinha já dos anos 80 pela cabeça de Boyd Eaton, um médico radiologista que teve uma epifania. Do Paleolítico até aos dias de hoje viveram cerca de 300 gerações. Uma eternidade para nós, mas um piscar de olhos à escala evolutiva. Não teria havido tempo para nos adaptarmos a uma mudança tão abrupta dos hábitos alimentares, e a chave para pôr fim à escalada das doenças crónicas e obesidade era voltar a um regime próximo do ancestral. Ou do que se pensava ser, já que será muito difícil saber o que realmente comiam nessa época. O registo fóssil é limitado, temos algumas pinturas sugestivas em cavernas, dados de populações não-ocidentalizadas, e pouco mais do que isso. Mas agricultura não haveria, e o consumo de cereais não deveria ser um hábito. Nem de lacticínios, já que muita coragem era precisa para ordenar uma búfala selvagem. Talvez um dos motivos pelos quais se pensar que a esperança média de vida não superava os 30 anos. A dieta na ancestralidade não é consensual sequer entre os especialistas. Christina Warinner, arqueologista biomolecular da Universidade de Zurich, tem uma opinião completamente diferente e desmistificou alguns conceitos errados numa TED talk em 2013. Não existe uma dieta Paleo. Era muito diferente consoante o local, estação, e disponibilidade de alimento. Nem era tendencialmente low-carb.


Os anos de 1970 em diante foram muito marcados pela orientação low-carb, e o Paleo bebeu da sua influência. Ambas as correntes evoluíram em paralelo, até se tornarem quase indistinguíveis. Era aceitável para um Paleo comer bacon frito em óleo de coco, coisa que ninguém no Paleolítico deverá ter provado. A manteiga também começou a ser permitida, desde que de animais de criação extensiva, e a banha para cozinhar. Surgiram as sobremesas Paleo, em que o mel, agave ou tâmaras substituíam o açúcar refinado convencional. Como assim sobremesas Paleo? Acentuou-se a falácia do “natural”. Se existe na Natureza, então faz bem. É também na Natureza que encontramos alguns dos venenos mais poderosos. Nem tudo o que é natural é bom ou aceitável. Nem no que comemos, nem nos nossos comportamentos. É natural que um homem tenha várias parceiras para aumentar o seu sucesso reprodutor na propagação dos seus genes. Mas não é aceitável. É natural que nos segreguemos em grupos étnicos e que demonstremos agressividade para com a diferença. Mas não é aceitável. É natural comer testículos de boi crus. Mas é nojento. Nos primórdios da evolução humana comia-se de certa forma, não porque era melhor, mas porque era a dieta possível. O que havia à disposição, quando havia.


Nesta era digital de fácil acesso a informação, e desinformação, o Google Trends é uma boa métrica da aceitação pública de uma dieta e das tendências alimentares. Em 2019 a dieta low-carb for destronada pelo jejum intermitente, que se mantém como moda dominante na actualidade. Como vimos, não é novo e jejuns sempre foram praticados para perda de peso ou elevação espiritual. Estudos em modelos unicelulares, nemátodes e ratinhos vieram também sugerir que o jejum intermitente poderia aumentar a longevidade. O que se pode querer mais? Um regime que promete deixar-te magro, e que vivas mais tempo. Muito apelativo e romântico pela ligação intrínseca do sofrimento à purificação. Mas no que diz respeito à perda de peso, a ciência tem deixado claro que não se trata de uma estratégia mais eficaz do que a restrição calórica contínua. Apenas tão eficaz. Quanto à longevidade, nada se pode concluir.


A ciência continua a evoluir, mas em reforço da importância do balanço energético como variável mais importante na perda de peso. O laboratório de Kevin Hall tem feito um trabalho excepcional nesse sentido, desmistificando muitos conceitos na base da teoria low-carb. Mas para o público, o que passa são as mensagens mais simplistas que oferecem uma solução para um problema. Ok é o deficit calórico, mas como fazer isso? De preferência sem passar fome. Na tentativa de demonstrar o conceito, Mark Haub, professor de nutrição na Universidade do Kansas, submeteu-se a uma dieta de 1800 kcal durante 10 semanas. As necessidades dele foram estimadas em 2600 kcal, mantendo, portanto, um déficit de 800 kcal. Perdeu 12 kg, 8,5% de massa gorda, o LDL-c baixou 20%, e os triglicéridos 38%. Até aqui tudo bem, não fosse a dieta dele à base exclusiva de Twinkies, uns bolos recheados muito conhecidos nos EUA. Como assim perdeu peso e gordura? O fenómeno do déficit calórico. Não é certamente a dieta mais recomendável, mas a experiência serve para colocar as prioridades no lugar. E se ele emagrece a comer Twinkies, tu podes emagrecer a comer pão, arroz e massa.


A última década viu uma mudança na forma como as tendências são ditadas. As revistas, a moda e o cinema passaram a ter menos influência, e as redes sociais dominam. Principalmente o Instagram, lançado há apenas 12 anos e com uma natureza muito visual, e mais recentemente o Tik Tok. Pessoas que antes não tinham tanto espaço mediático puderam criar o seu, e ganhar com isso. Fama e dinheiro. O caso da Kim Kardashian por exemplo, que na última década influenciou tanto a moda como os padrões corporais da mulher. Trouxe de volta as formas femininas voluptuosas, anca larga e cintura esguia, mas agora está a acabar com elas novamente. Emagreceu para caber no seu vestido milionário para a MET Gala, com uma dieta low-carb rigorosa, continuando nesse caminho feliz e contente com o Ozempic. Medicação que usa para perder peso, e fala disso abertamente nas redes sociais. A magreza extremada estará de volta? As celebridades e influencers ditam as modas e comportamentos. Que não haja dúvidas disso, para o bem e para o mal. Em 2013 saiu um editorial no New York Times sobre a mastectomia preventiva de Angelina Jolie que alertava para o cancro da mama. Duas semanas depois da publicação, houve um aumento de 64% nos testes genéticos BRCA1/2 para avaliação de risco, e por isso uma redução de 3% nas mastectomias.


O Instagram tem mais de 200 milhões de utilizadores. Estamos formatados para seguir exemplos, comparar-nos com outros, ambicionar as suas vidas perfeitas online. Porque qualquer vida virtual é aparentemente melhor do que uma real. Os influencers tornam-se modelos de corpo e lifestyle, alimentando o desejo de um dia também podermos ser como eles, e a frustração de não conseguirmos ser mais nada além de nós próprios. As redes sociais podem ser uma fonte de motivação e informação sem dúvida, mas também um catalizador para distúrbios alimentares, distorção de autoimagem, e baixa autoestima. Uma tese de Mestrado publicada em 2017 avaliou o impacto das redes sociais no equilíbrio emocional e na percepção da autoimagem dos utilizadores. Metade das mulheres inquiridas admitiu sentir-se mal com o seu corpo quando vê conteúdos de fitness e moda nas redes sociais, e mais de 70% disse comparar-se frequentemente com os modelos que seguem. É neste meio que se definem os novos padrões, e receio que de uma forma pouco positiva.



O culto das dietas


Depois desta passagem superficial sobre a história das dietas ao longo dos milénios, uma das conclusões que podemos retirar é de que são cíclicas, efémeras e oportunistas. Vão e vêm ao sabor do contexto social e económico do momento. A ciência é clara. Uma dieta funcionará para perder peso tanto quanto permitir manter o deficit calórico necessário para que isso aconteça. As calorias importam e, voluntariamente ou espontaneamente, o consumo terá de baixar para emagrecer. Por mais voltas que se dê e estratégias mirabolantes que se arranjem, é a isto que se resume. O melhor regime será o que permite melhor adesão e consistência ao longo do tempo. Mas no meio de tanta estupidez, não se caia no outro extremo de desvalorização e antagonização completa das dietas, e da importância de combater a obesidade para uma redução dos riscos associados. Nem é errado ou ilegítimo perder peso por motivações apenas estéticas. Cada um sabe de si e é dono do seu processo.


Mas as dietas são hoje mais do que um meio para perder peso, e Atkins é talvez um dos principais responsáveis ao promover um regime, uma forma de comer, para toda a vida. As pessoas começaram a identificar-se com a dieta, como parte de um grupo. Eu sou low-carb. Eu sou Paleo. Eu faço jejum intermitente. Um statement. Pelo menos durante um tempo, até perceber que afinal não sou nada disso. Sou resultado de um contexto dinâmico, ditado por uma mescla de factores fisiológicos, socioeconómicos, culturais, ambientais e contingências do momento. Não existe uma dieta ideal de que te possas apropriar. Há sim a dieta possível, que cumpre um objectivo num determinado contexto. Somos capazes de prosperar numa variedade de ambientes, com uma variedade de hábitos alimentares. Se a ciência tivesse provado conclusivamente que existe uma forma ideal e mais correcta de comer, nada disto era questão. Não existia espaço competitivo e mercado para tantas dietas. Os defensores de cada uma vão invocar evidência científica em suporte das suas alegações, porque a ciência substituiu a religião e tradição como autoridade. Não a ciência como um todo, mas os dados que lhes interessam. Fazendo dos mecanismos fisiológicos e processos os outcomes, os desfechos.


Existe uma tendência natural para um grupo que partilha rituais ou corrente dietética de sobrevalorizar alguns alimentos que estão na base do seu regime. De os elevar ao excepcional, quase divino. E não é só nas fad diets. Temos o azeite na dieta Mediterrânea, cheio de polifenóis, vitamina E, e ácidos gordos saudáveis, tal como muitos outros alimentos. A carne na dieta Paleo, e por aí fora. Na verdade, atribuir superpoderes a alimentos é hoje mais comum do que nunca, mas não um fenómeno recente. Quando Moisés chega a Cannan com os hebreus, a fome instala-se. Não tinham o que comer e muitos o culparam de os conduzir ao abismo. Pelo menos no Egipto não passavam fome. Deus salva Moisés de um motim, com a oferta do que chamaram man hu, uma espécie de flocos com sabor mel que caiam do céu todas as noites. Durante anos este foi o único sustento dos hebreus, um alimento divino que lhes dava tudo o que precisavam para sobreviver. Um superalimento. Mas os hebreus são humanos. Fartaram-se de comer todos os dias a mesma coisa, e queriam carne. Deus enfureceu com a ingratidão, enviou carne seguida de uma praga que atingiu todos os que a comeram. E morreram.


Estamos programados a procurar variedade, como sinal de um ambiente abundante. E se existem recursos, do ponto de vista biológico é a altura certa para criar reservas. Comer é um prazer, que atenua com a repetição do estímulo. Cada vez menos dopamina é libertada na procura do alimento e consumação da refeição. Mais do mesmo. O que não estamos é preparados para um ambiente de abundância contínua, em que a recompensa, neste caso o alimento, não requer esforço na procura. Prazer fácil gera adição. O prazer não é mais do que um mecanismo biológico, conservado nos animais, para promover um comportamento essencial à sobrevivência. O alimento como sustento, e o sexo para garantir a continuidade da espécie. Aproveito a deixa para contar uma história que ilustra bem o que pretendo dizer. Ninguém sabe se é verdade, mas todos os professores de neurobiologia a contam. Calvin Coolidge foi presidente dos EUA entre 1923 e 1929. Numa visita a uma quinta com a primeira-dama, separaram-se em dois grupos. Ela entrou no galinheiro e viu que o galo não parava de “montar” as galinhas. Perguntou “passam o dia todo nisto?”. Ao que o guia respondeu “sim”. “Conte isso ao Sr. Coolidge” disse ela. Chega a vez do presidente visitar o galinheiro. “A primeira-dama pediu para lhe mostrar o galo a ‘bicar’ as galinhas a toda a hora”, disse o guia. “Sempre a mesma galinha?”. “Não”. “Diga isso à Srª Coolidge”. Todos percebem a moral da história, ou já a ouviram com galinhas, vacas ou outro animal qualquer. Monotonia e restrição são contra a natureza humana. E por isso também uma dieta.


No fundo, uma dieta é um culto como disse sabiamente Fletcher. Não existe fora de um contexto social. São grupos de pessoas que partilham crenças e rituais, fechados, defensivos e até agressivos para a influência externa. A apetência para criar grupos faz parte da natureza humana, e nada de errado com isso. O problema surge pela tensão inerente ao objecto da dieta. Restrição e privação de algum tipo, que se opõe à vontade natural de comer tudo o que nos apetece. O alimento passa a ter valor intrínseco. Certo ou errado. Permitido ou proibido. Nós estamos certos e eles não. Nós e os outros. Tentam-nos convencer que é impossível atingir a saúde plena sem partilhar o seu culto. Mas é. A dieta ideal e perfeita não existe. É uma ilusão. Os caminhos para a saúde e vitalidade plena não vários, e desconfiem de quem se julga detentor da verdade escondida. A conversa é sempre a mesma. O resultado é sempre o mesmo. Se o objectivo é perder peso, a dieta funcionará enquanto permitir manter o déficit calórico. O resto é, como Buekens define obscurantismo, “um jogo de fumo verbal que sugere clarividência onde não existe nenhuma”.


1 comentário

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1 Comment


Catarina Martins
Catarina Martins
Oct 27, 2022

Sérgio, que artigo tão bem escrito e necessário! Uma retrospectiva sucinta e completa! Parabéns! Como sempre, brilhante!

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