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A armadilha da cheat-meal na perda de peso

A introdução de uma cheat-meal periódica é prática comum entre os entusiastas do fitness, mas não só, quando se encontram numa fase de maior restrição alimentar com o objectivo de perder peso e massa gorda. Ou sempre que numa dieta rígida, para um qualquer objectivo. Um estudo com uma amostra de jovens adultos fala-nos de uma prevalência superior a 85% quando a definimos de forma lata como a ingestão premeditada de algum alimento fora da dieta programada. Uma análise às imagens publicadas no Instagram com a hashtag #cheatmeal estima um aporte energético que pode ir até 9000 kcal numa única refeição. Os homens têm a capacidade de ingerir o dobro das calorias necessárias para se sentirem saciados, quando o objectivo é comer sem restrições que nem alarves. Trata-se de um comportamento muito partilhado em perfis que expõem corpos esteriotipados “fit”, e que as associam à existência de benefícios para a composição corporal. A verdade é que não existe qualquer evidência de que a cheat-meal tenha algum impacto positivo a esse nível, e pode até ser uma armadilha para quem tenta perder peso. As calorias da cheat-meal também contam.


Antes de mais convém definir cheat-meal que, como a própria tradução literal indica, se trata de uma “refeição batota”. Uma refeição fora da dieta regular estabelecida e que permite a ingestão de alimentos que gostamos, mas nos restringimos durante o resto do tempo. A periodicidade desta refeição pode variar, mas o mais comum é que ocorra uma vez por semana. Uma cheat-meal não é um cheat-day, “dia de batota”, nem pressupõe que se arraste durante horas a fio. Como aquelas reuniões de família que começam ao almoço na mesa e acabam ao jantar. Há quem o pratique dessa forma, mas não é o mais comum nem o mais recomendado. E apesar de efectivamente se aproveirar essa refeição para comer “merda”, ou alimentos aos quais se dá essa apreciação, não se escreve “shit-day” como leio muitas vezes nas redes sociais.


Em defesa da cheat-meal são alegados essencialmente dois aspectos principais:


1) Permite incluir alimentos que gostamos e facilitar a adesão por isso, aliviando a percepção de restrição e sentimento de culpa. Cria espaço para ocasiões de socialização com outros;


2) Favorece uma espécie de “reset” às adaptações metabólicas provocadas pela restrição energética, ao acelerar o metabolismo e reverter as alterações hormonais decorrentes da perda de peso.


Relativamente ao primeiro, cria-se algum espaço para ambiguidade na interpretação. Admito que em alguns casos poderá alivar o stress psicológico de uma dieta restritiva, mas aí o problema está na dieta e na forma como é encarada. Como uma obrigação e sacrifício ao invés de pelo positivo. Um caminho para um objectivo que por si só nos traz benefícios. E não tem de ser uma penitência nem é necessário excluir tudo aquilo que gostamos. A flexibilidade instruída é um comportamento associado ao sucesso de uma dieta e maior adesão. A cheat-meal é tudo menos isso. É o exacerbar de um modelo rígido que preconiza juízos de valor em relação aos alimentos. Uma apreciação dicotómica entre bons ou maus, permitidos ou proibidos, que não favorece uma relação saudável com a alimentação e que pode em alguns casos manifestar características de distúrbio. Apesar de encontrarmos nessas refeições livres aspectos que se associam ao diagnóstico de binge eating, o stress psicológico não parece estar presente pela percepção de um maior controlo do comportamento e sem a vergonha tipicamente sentida. No entanto, encontramos muitas vezes rituais compensatórios, como o aumento da actividade física no dia seguinte, maior restrição calórica a posteriori, ou toma de suplementos que alegam atenuar o impacto de uma refeição mais farta.


O comportamento alimentar é um fenómeno complexo ditado por mecanismos homeostáticos involuntários, mas também pelo prazer, recompensa e cognição. Entenda-se por mecanismos homeostáticos aqueles que atendem às necessidades energéticas efectivas. Se eu necessito de energia, vou ter fome e estou motivado para a resposta motora que leva à procura e consumação da refeição. As zonas cerebrais executivas, o hipotálamo e tronco encefálico, regulam esses mecanismos através de inputs internos que recebem e que sinalizam essa necessidade de energia. Num sistema perfeito, esta regulação manteria o peso estável sem grande esforço através de um balanço entre a necessidade e a fome. Comeríamos quando precisamos, e quanto precisamos. Mas a Natureza complicou-nos a vida para defender a espécie, criando mecanismos que se sobrepõem à homeostase no sentido de permitir a criação de reservas num ambiente de abundância, muito recente na nossa história evolutiva pautada por escassez, esforço na obtenção de alimento, e intermitência de períodos de fartura. A altura certa para que fossem criadas reservas, sendo para isso necessários mecanismos que facilitem a ingestão em excesso, mesmo em plenitude energética. É aqui que entra a fome hedónica, mediada pelo prazer e recompensa. O prazer é na verdade um mecanismo conservado e potente de motivar comportamentos essenciais à sobrevivência. Todos os animais sem excepção buscam estratégias que a maximizem. Falo de comer para viver ou do sexo para reproduzir e garantir a persistência dos nossos genes. Dois comportamentos que a evolução associou ao prazer precisamente para que os procuremos intensivamente.


A recompensa ou gratificação que um alimento nos dá depende da sua composição e memórias associativas que criámos em experiências passadas. Existem três nutrientes que satisfazem mais essa fome hedónica e promovem maior resposta dos centros de recompensa, o nosso sistema mesolímbico que já apresentarei em maior detalhe. São eles o açúcar, sabor doce, e hidratos de carbono de rápida assimilação, a gordura saturada, e o sal. Individualmente não nos parecem tão interessantes assim, nem dariam uma “boa” cheat-meal. Pouca gente acha graça a comer açúcar à colher, ou banha. Sal muito menos. Mas combinem-nos e temos alimentos altamente palatáveis. Uma pizza, bolos, bolachas, batatas-fritas, e quase tudo do melhor que possam imaginar. Não é de peixe com batatas ou frango com arroz que se fazem cheat-meals. Não só porque encaixam nos tais alimentos “bons”, mas também porque não despertam o mesmo prazer e vontade para a larga maioria das pessoas.


O sistema límbico é central na motivação de comportamentos associados à obtenção de uma recompensa e dimensão do incentivo. Em particular duas estruturas que o integram, a área tegmental ventral (VTA) e o nucleo accumbens (NAc). O que chamamos de sistema mesolímbico. O NAc é importante para comportamentos direccionados a um objectivo, na aprendizagem instrumental, e na flexibilidade comportamental. Portanto, na associação entre uma acção e um reforço. Temos como exemplo a experiência clássica de Pavlov. O cão a salivar quando a campainha toca depois de ter sido condicionado pelo alimento. Tantas vezes recebeu o reforço quando a campainha tocava, o alimento, que passou a bastar ela tocar para antecipar a resposta e salivar. Antes sequer de ver o alimento. O NAc traduz então a motivação numa acção motora através de uma outra estrutura, o pallidum ventral, que enerva o tronco encefálico e medula. As áreas executivas que vão iniciar a resposta, como salivar por exemplo no caso do cão de Pavlov.


O neurotransmissor mais importante nos comportamentos de incentivo é a dopamina, que o vai motivar e manter. Neurónios dopaminérgicos enervam o NAc a partir da VTA e determinam o nível de desejo por uma recompensa. Quanto mais dopamina, mais queremos e mais motivados estamos para a obter. Mas o sistema mesolímbico não determina o valor de reforço e prazer associado. Isso depende do estado interno e memórias associativas, “boas” ou “más”. Apenas sinaliza o quanto queremos. Porque “querer” e o “gostar” são componentes distintas da recompensa. Eu posso querer e não gostar ou saber que me faz mal, ou não saber ainda se gosto ou não. Numa experiência clássica, a dopamina não aumenta apenas quando o ratinho come o torrão de açúcar. Aumenta sim ao pressionar a alavanca que o dispensa, na expectativa da recompensa a que ele está condicionado. E esse aumento da dopamina prevê a quantidade ingerida de um alimento com elevado poder de reforço. Quanto maior, mais estamos motivados a ingerir.

Por exemplo, quanto mais dopamina produzimos ao ver um anúncio televisivo de fast-food, mais comemos quando esse alimento nos é apresentado de seguida e mais esforço estamos dispostos a fazer para obter a refeição. Ir a uma estação de serviço a meio da madrugada, ou pedir pelo Uber Eats. Hoje em dia temos a vida demasiado facilitada. Mas a actividade neuronal no VTA e NAc não está associada à palatabilidade de um alimento, o quanto ele nos sabe bem, mas sim à antecipação da recompensa e expectativa de reforço positivo. Aspectos que estão muito relacionados com as representações associativas de emoções a certos alimentos. A uma memória acedida num determinado contexto que se aparenta, de um estado interno ou emocional. “Estou triste. Da última vez que estive triste comi um chocolate e fiquei mais contente. Quero um chocolate agora”. Ou então, “Falhei e sou um fracasso. Tenho de me punir e vou comer até rebentar”.

A fome associada a prazer e os estímulos que a promovem são feed-forward, ou seja, amplificam a resposta e dão continuidade ao comportamento no imediato. Comemos açúcar e queremos mais açúcar naquele momento. Temos dificuldade em parar. Mas o sistema dopaminérgico em que assenta vem com dois mecanismos de segurança - a previsibilidade e acomodação/habituação. A dopamina aumenta mais na imprevisibilidade e incerteza da recompensa, e a resposta vai atenuando à medida que torna um hábito. Estímulos repetidos são cada vez menos gratificantes, e menos dopamina é libertada na sua antecipação. Por exemplo, 1 torrão de açúcar aumenta X dopamina num ratinho. Aumentamos para 2 no dia seguinte e temos 2X dopamina. Mas subimos para 3 torrões e apenas vamos ter X dopamina em resposta, e não 3X. A certeza da recompensa e repetição reduzem a gratificação. É apenas mais do mesmo, e garantido. Se um ambiente é abundante num determinado estímulo, sejam alimentos doces como sinal de densidade energética por exemplo, não precisamos de ser “lambões” pois estará lá sempre para nós. Se eu comer macarrão com queijo todos os dias vou reduzindo progressivamente a quantidade ingerida ao longo do tempo. O que não acontece se esse estímulo for esporádico. Ou se esse alimento me for negado por um juízo de valor ou por ser proibido na minha dieta.

Daqui facilmente entendemos que para alguém com tendência para comer compulsivamente e mais permissiva à fome emocional, a rigidez na restrição dificilmente será uma solução. Comer ou não um alimento deve ser uma escolha e não uma proibição. Para que o valor de incentivo seja consonante com a disponibilidade permanente de um alimento no nosso ambiente, porque efectivamente o é já que está à distância do frigorífico. O desejo aumenta por alimentos que restringimos. Que estão disponíveis, mas de acesso restrito e incerto. Por exemplo, após 7 dias de abstinência forçada de açúcar e estímulo doce o poder de reforço subjectivo destes alimentos aumenta em 33%. A dopamina aumenta mais na expectativa da sua ingestão, relacionando-se também com um consumo aumentado até ao limiar de gratificação. Além disso, atendemos mais a estímulos associados ao doce, que são as memórias associativas, quando a utilização de glicose é inibida ou quando estamos em hipoglicemia. Portanto vemos que o alimento proibido é mesmo o mais apetecido, e é natural que o seu poder de reforço seja maior. Tentando explicar porque uma relação de tudo ou nada, pode/não-pode, com a comida não é de todo saudável nem favorece o controlo do peso.

A flexibilidade é efectivamente uma característica comum que encontramos em indivíduos bem-sucedidos na perda e manutenção do peso. Mas também uma constância que não se coaduna com a cheat-meal, e até uma certa monotonia na selecção dos alimentos e nas refeições como forma de criar previsibilidade. Antecipam os desafios e não improvisam. Preparam e levam consigo as refeições para o dia, ou sabem de antemão onde as vão fazer e que opções existem que encaixam no seu padrão alimentar. Apesar de mais de 90% dessas pessoas limitarem o consumo de certos tipos de alimentos, sabem que se forem excepcionais não irão afectar de forma significativa o processo se rapidamente retomarem a sua alimentação regular. Não têm um comportamento tudo-ou-nada, de perdido por 100 perdido por 1000. Comer uma bolacha não é igual a comer um pacote inteiro. Comer uma fatia de bolo é diferente de comer o bolo todo. Moderam o consumo como forma de reduzir o impacto negativo, mas num contexto em que justifique não se negam. Vão jantar fora com amigos e escolhem a melhor opção entre a oferta, e são capazes de beber um ou dois copos de vinho ou até uma sobremesa. Têm maior competência alimentar e skills de contexto, conseguindo adaptar uma determinada situação a seu favor. Aderir a um regime rígido a 100% durante um mês não traz resultados tão bons como mantê-lo a 80% durante 6 meses. A consistência vence sempre a tentativa de ser perfeito, sem a frustração de não o conseguir. Frustração e desmoralização são dos principais factores de insucesso num processo de perda de peso.

A ideia de que se pode enganar a dieta é um pouco sem sentido. Como diz o meu amigo Paulo Muzy, “se num namoro não existe dia do corno, porque deveria existir o dia do lixo numa dieta?”. Que sentido faz permitir-nos comer 2 caixas de gelado num dia, quando nos privamos de comer uma colher todos os dias? Uma alimentação saudável não tem on e off, nem existem alimentos que por si só nos impeçam de ter boa saúde ou de atingir os resultados que pretendemos. Apenas a frequência e quantidade com que são ingeridos. No limite é possível perder peso e melhorar a composição corporal a comer o que chamam de “lixo”. Mark Haub mostrou isso mesmo numa experiência pessoal onde demonstrou ser possível perder peso apenas comendo Twinkies, uns bolos muito conhecidos nos EUA. Este professor de nutrição da Kansas State University submeteu-se a um deficit calórico de 800 kcal por 10 semanas, ingerindo durante esse período 1800 kcal de Twinkies, todos os dias. Perdeu 12 Kg, baixou a % de massa gorda em 8,5, o LDL-C reduziu 20%, e os triglicéridos 38%. Isto significa que comer Twinkies faz bem? Não. Significa que perder peso e massa gorda quando a temos a mais melhora a saúde e indicadores metabólicos. Mostra apenas que isso é possível até com esses alimentos do demónio.

Obviamente que a componente qualitativa é importante, nem a estou a menosprezar. Comer apenas 1800 kcal de Twinkies requer algum esforço porque a densidade calórica é muito grande. São poucos Twinkies para um dia inteiro. Já Kevin Hall demonstrou, e outros antes dele, que existe uma tendência para um consumo calórico superior numa dieta ultra-processada, comparativamente a outra mais “natural”. Por dois motivos principais. A elevada densidade energética, e pouca quantidade de alimento para um determinado aporte calórico, o que gera menos saciedade, e a elevada palatabilidade que já falámos. Aspecto que condiciona o comportamento alimentar, fazendo com que comamos demais.

Portanto, a ideia de uma cheat-meal faz pouco sentido quando o objectivo é promover educação e competência alimentar, podendo até em alguns contextos promover comportamentos compulsivos. Sendo uma estratégia muito preconizada no meio do fitness, também a prevalência de distúrbios alimentares o é. Talvez essa não seja a percepção de quem está de fora e olha para os seus role-models como exemplo de bem-estar. Em muitos casos não poderiam estar mais longe da verdade. Nas redes sociais só se passa o que se quer. Os estudos indicam que a prevalência de anorexia no passado em modelos de fitness é superior a 40% no sexo feminino, e a de ocorrência de episódios de binge de 58%. Compulsão alimentar poderia ser diagnosticada em 31% de uma amostra representativa. A cheat-meal não é mais do que uma ilusão de controlo que mitiga o stress psicológico do fracasso. Naquele momento eu permito-me, mas o controlo é tão frágil que num momento para o outro tudo descamba e torna-se impossível seguir a dieta regular. A ansiedade vai aos píncaros na expectativa da recompensa que virá só dali a uma semana, e não dá mais para esperar. Claro que para muitos sem um perfil de risco a cheat-meal não é mais do que um momento de alarvar na dieta, sem consequência a nível do comportamento alimentar no futuro. Voltam depois à dieta e pronto. Venha a próxima. Mas isso também não significa que tenham um melhor resultado dessa forma.

E em relação às adaptações metabólicas? Os gurus do fitness têm razão ao alegar o tal reset metabólico? A evidência não vai nesse sentido. De facto, o dispêndio energético tende a aumentar após uma cheat-meal hipercalórica, por um período de algumas horas e não por dias como se tenta fazer querer. E esse aumento não é mais do que uma adaptação no sentido de dissipar o excedente como calor, mas que sofre uma grande variabilidade interindividual. Algumas pessoas são capazes de aumentar significativamente a termogénese após overfeeding, mas outras não. O impacto do excesso varia, e são os que mais precisam de dieta que, por norma, menos aumentam o dispêndio autónomo após um abuso. Os que têm mais facilidade em engordar.

Os mecanismos que explicam este fenómeno e as diferenças interindividuais entre os magros constitutivos e os gordos inatos não são totalmente conhecidos. É o sistema nervoso simpático que regula a termogénese induzida por overfeeding, e de facto a actividade em resposta a uma refeição é tendencialmente muito menor em obesos do que em indivíduos normoponderais. Apesar de o tónus simpatovagal em repouso não diferir entre indivíduos. Apenas após refeição estas diferenças se manifestam. Mas quando estamos em restrição na tentativa de perder peso, o nosso corpo está primed para o recuperar assim que pusermos o pé na argola. Mas apenas se pusermos o pé na argola e cometermos esses excessos. A termogénese induzida pela refeição reduz, a conversão de T4 em T3 também, a forma mais activa das hormonas tiroideias, a produção de calor para dissipação de energia baixa, a sensibilidade à insulina dos adipócitos aumenta e a reserva de ácidos gordos torna-se mais favorável num ambiente excedentário. Não é uma refeiçãozinha apenas que vai mudar isto, nem que tenha 10 000 kcal. Apenas a saída de um estado deficitário irá com o tempo restabelecer um metabolismo de equilíbrio. A nível hormonal também não se verificam efeitos persistentes antes dos 3 dias fora de um contexto deficitário. Mas a normalização poderá levar na verdade várias semanas, mesmo após retorno a um status energético positivo.

Quando excedemos largamente as nossas necessidades energéticas num período curto de tempo, o organismo poderá responder com uma redução correctiva do apetite nos dias seguintes, e consequentemente do aporte energético. Uma cheat-meal muito calórica faria com que tivéssemos menos fome. Esta correção não parece ocorrer de forma imediata, no próprio ou no dia após, mas poderá ter um lag de 4-6 dias. E sabe-se que indivíduos capazes desta correcção involuntária têm menos probabilidade de ganhar peso ao longo do tempo. Mas nem toda a gente é capaz desta regulação fina do aporte energético e a correção a médio prazo parece não acontecer. O que foi ingerido na refeição livre terá um maior impacto na atenuação do deficit calórico cumulativo. Claro que numa dieta altamente controlada com contagem de calorias este efeito dilui-se, pois se for cumprida não está sujeita à influência das variações do apetite. Mas a grande maioria das pessoas não segue nem quer seguir um regime deste tipo, preso à calculadora, nem uma dieta deve ser assim. Não é sustentável a longo prazo, embora um período de monitorização apertada com registo e contabilização possa ajudar sim na educação alimentar, dando um maior conhecimento qualitativa e quantitativo dos alimentos que facilitará a autonomia no futuro. Eu por exemplo passei por essa fase há cerca de 15 anos, e hoje tenho uma noção intuitiva bastante precisa da composição de uma qualquer refeição que me seja apresentada. Uma competência que falta à larga maioria das pessoas e que não se ganha na academia. Apenas na prática. A literacia alimentar passa também por aí.

A generalidade das pessoas não tem a mínima noção qualitativa ou quantitativa dos alimentos, e isso fica bem patente nas perguntas que nos fazem. Mostras um gelado de fruta e whey, e vêm-te dizer que com manteiga de amendoim fica top. Pois fica, e com mais 300 kcal nessa colher de sopa que lá meteste. Também fica muito bom com Nutella e granola. Fazes as contas e chegas à conclusão que mais valia teres ido comer um corneto. Tens uma fatia de pão com 2 ovos mexidos no teu pequeno-almoço, e perguntas se podes adicionar abacate. Devolves a pergunta, “posso adicionar 15 g de gordura e 180 kcal?” A perspetiva muda. Mesmo os alimentos que temos como saudáveis contam! E quando o objectivo é perder peso e gordura, a componente quantitativa não é secundária à qualitativa. "Ah mas a densidade nutricional aumenta e sentimo-nos mais saciados". Que grande treta...

O impacto de uma cheat-meal bruta pode ser amplificada pelo contexto de privação em que estamos, e por factores inatos como a maior ou menor capacidade de dissipar excessos. Mas também a própria composição corporal pode influenciar a dimensão do estrago. Vamos a um exemplo. Eu peso 90 Kg, tenho 36 anos, 1,72m, o percentual de massa gorda nos 14%, e uma taxa metabólica de repouso estimada em 2200 kcal/dia. Como tenho um calorímetro ao meu dispor, medi um valor real de 2340 kcal/dia, pouco mais de 5% superior ao previsto. Tendo em conta a minha actividade física, poderia estimar as necessidades totais para manutenção em cerca de 3200 kcal/dia. Mas hipoteticamente eu queria perder peso, e reduzia o aporte em 30%, cerca de 950 kcal por dia. Diariamente passaria a ingerir 2250 kcal/dia, com um deficit acumulado durante a semana útil de 4750 kcal. Depois vem o fim de semana, e para anular este deficit eu teria de conseguir ingerir 9250 kcal entre Sábado e Domingo. As 2250 kcal regulares, mais metade do acumulado em cada um dos dias. A margem é confortável diria, tendo eu também uma boa noção intuitiva do valor calórico e macronutricional do que estou a comer. Uma refeição mais livre não iria causar grande moça, e provavelmente manteria a perda de peso sem problema.

Mas a Joana pesa 52 Kg, 28 anos, 1,60 m, tem 25% de massa gorda, e uma taxa metabólica de repouso estimada em 1300 kcal/dia. O dispêndio total diário rondará as 1900 kcal. Ela também quer perder peso, massa gorda obviamente, e submete-se a um deficit de 20%, passando a ingerir 1500 kcal por dia, com um acumulado ao fim da semana útil de 2000 kcal. Vem o fim de semana, vai-se a dieta. Um almoço mais “pesado”, com sobremesa, e dois copinhos de vinho no Sábado e Domingo, e lá se foi a perda de peso. Entendem o “perigo” do dia do lixo? Comer 3500 kcal num desses dias é muito fácil, quanto mais dividir o acumulado por dois e ingerir em cada 2500 kcal. Mesmo considerando um cenário simpático e muito ousado em que 25% do ingerido em excesso seria dissipado, é fácil anular um deficit quando deixamos as rédeas da dieta por um ou dois dias que seja. As calorias também contam ao Sábado e Domingo, aniversários, batizados e casamentos, 365 dias por ano.

A cheat-meal poderá ter os seus efeitos positivos em alguns casos claro, além do alívio da pressão social ou psicológica de uma restrição constante. Nos 2 dias seguintes é natural que disponibilidade para treinar aumente devido à expansão das reservas de glicogénio, diminuídas em qualquer dieta de restrição calórica, para mais quando são os hidratos de carbono os sacrificados. Mas isso poderá ser conseguido, e será melhor ainda, com uma supercompensação de hidratos de carbono em momentos chave. Períodos de 24-36 h com um aumento significativo do consumo, mas controlado. Além disso, se a composição corporal é o objectivo primário, a performance desportiva fica em segundo plano quando não se é atleta e compete. Há que assumir uma quebra no desempenho, e a dieta dita o sucesso e os resultados.

Sou desfavorável ao conceito de cheat-meal, e defendo uma flexibilização controlada nos momentos justificados. Comer até rebentar e reforçar a dicotomia entre alimentos proibidos e permitidos não faz qualquer sentido na promoção de competência e educação alimentar. Se sentes necessidade de fazer batota na dieta, é porque algo de errado existe na dieta. Se fazes batota no namoro, alguma coisa de errado há na relação. A diferença é que na dieta não faz mal comer fora de vez em quando, mas mesmo nessas ocasiões a moderação é recomendável, e as melhores escolhas devem ser feitas. Toda a acção tem uma consequência, e a cheat-meal pode ser uma armadilha para quem quer perder peso. Uma dieta não é um compromisso intermitente, e se a vês dessa forma está tudo errado.


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