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A dieta cetogénica na composição corporal e performance

Foto do escritor: Sérgio VelosoSérgio Veloso

A corrente da dieta cetogénica, nas suas diversas variantes, ganhou adeptos fervorosos nas últimas décadas que evangelizam pelas redes sociais a sua doutrina alimentar, relatando aumentos de energia, saciedade, e perda de peso. Tentador, para mais quando não existe restrição calórica pré-definida associada a este tipo de dieta, mas apenas no consumo de hidratos de carbono. Nos anos 20 foi descoberto que a restrição severa de hidratos de carbono mimetizava o metabolismo do jejum prolongado, com um aumento da produção de corpos cetónicos. Mas a verdade é que poucos parecem entender o processo, o que é realmente a cetose, e a sua finalidade fisiológica. Trata-se de um mecanismo de sobrevivência que evoluiu connosco para sustentar a vida em períodos longos de escassez, e para “driblar” as limitações da utilização de ácidos gordos como energia. Uma via metabólica para condições extremas, à qual estamos adaptados mas não necessariamente ideal noutro contexto.


A utilização de ácidos gordos como fonte de energia tem limitações que se manifestam essencialmente a dois níveis. 1) O cérebro não os pode utilizar directamente, sendo necessária a produção de corpos cetónicos como substrato alternativo à glicose, satisfazendo até 2/3 das suas necessidades energéticas, e 2) em jejum prolongado ou privação de hidratos de carbono a taxa metabólica e o consumo de oxigénio tendem a baixar como forma de conservar energia e garantir a sobrevivência por mais tempo. Os ácidos gordos necessitam de mais oxigénio para serem oxidados (RQ 0,69) do que a glicose (RQ 1,0) ou corpos cetónicos (RQ 0,89-1,0), tornando-se pouco eficientes neste contexto (Figura 1). Dessa forma, os corpos cetónicos apresentam-se como a única alternativa viável. 

Figura 1 - Coeficiente respiratório dos hidratos de carbono e lípidos


E quais são os requisitos para entrar em cetose? Restrição calórica muito severa ou privação total de alimento, ou um consumo baixíssimo de hidratos de carbono e substratos glucogénicos. Nestas condições o rácio insulina/glucagina baixa substancialmente e a taxa de ß-oxidação hepática é proporcional ao fluxo de ácidos gordos para o fígado, sejam eles alimentares ou provenientes do tecido adiposo que os liberta a uma taxa crescente. A inibição sobre a enzima que executa o transporte de ácidos gordos para a mitocondria, a carnitina palmitoiltransferase 1 (CPT-1), é aliviada nestas condições, e passam facilmente para a matriz onde são ß-oxidados proporcionalmente ao fluxo. A ß -oxidação gera grandes quantidades de acetil-CoA que em condições normais condensa com o oxaloacetato e integra o ciclo dos ácidos tricarboxílicos (TCA ou ciclo de Krebs). Mas em situações de privação de hidratos de carbono, os níveis de oxaloacetato baixam uma vez que se trata maioritariamente de um derivado do piruvato, produto da glicólise, reduzindo a velocidade do TCA. Assim, grande parte do acetil-CoA não tem forma de seguir por esta via e é canalizado para a produção de corpos cetónicos, nomeadamente o acetoacetato (AcAc) que na sua maioria é reduzido a 3-hidroxibutirato (3-HB), um substrato mais estável e resistente à degradação espontânea na corrente sanguínea. Isto porque uma parte do acetoacetato é também descarboxilado a acetona, volátil e causador do hálito frutado característico dos indivíduos em cetose acentuada. Posteriormente o acetoacetato e 3-hidroxibutirato são novamente convertidos em acetil-CoA noutros tecidos, que é mobilizado para a produção de energia pelas vias metabólicas tradicionais. O fígado não usa eficientemente os corpos cetónicos como fonte de energia uma vez que não expressa a enzima limitante do processo de reconversão a acetil-CoA, a sucinil-CoA:3-cetoácido CoA transferase, tratando-se de um órgão de produção e distribuição para outros tecidos não-glicodependentes em exclusivo. Como o músculo esquelético, cardíaco, e grande parte das células cerebrais.


Já percebemos que os requisitos para a produção de corpos cetónicos passam pelo consumo muito limitado de glicose/hidratos de carbono ou substratos glucogénicos, como alguns aminoácidos metabolizáveis em piruvato e oxaloacetato. Os aminoácidos podem ser agrupados em duas famílias. Os glucogénicos, quase todos, e os cetogénicos, metabolizáveis apenas em acetil-CoA (Lisina e Leucina). O Triptofano, Isoleucina, Tirosina, Fenilalanina, e Treonina podem ser glucogénicos e cetogénicos. Para que a cetose seja possível, não só o aporte de hidratos de carbono tem de ser baixo, como o de proteína não deverá exceder os 15-25% do aporte energético total. Caso contrário a produção de glicose no fígado continua elevada e prioritária, e a integração do acetil-CoA derivado da ß-oxidação no ciclo de Krebs mais eficiente, atenuando a produção de corpos cetónicos. Apenas 1,75 g de aminoácidos glucogénicos são necessários para sintetizar 1 g de glicose. Por exemplo, num cálculo grosseiro, um homem de 80 kg com um consumo de 2 g/Kg de peso de proteína ingere 160 g no total. Descontando os cerca de 15% de aminoácidos exclusivamente cetogénicos numa dieta tradicional, podemos daí gerar perto de 80 g de glicose no limite. Junto com um consumo residual alimentar de 30 g e o que é gerado a partir dos aminoácidos derivados da proteólise muscular, é mais que suficiente para que alguns indivíduos não entrem em cetose. Ainda em 1928, Heinbecker verificou que nos esquimós de Baffin a cetonúria era mínima, mesmo subsistindo com uma dieta exclusivamente à base de foca, rica em gordura mas também proteína. A glicose derivada da proteína alimentar era suficiente para prevenir a cetose. Em pessoas com dietas muito pobres em hidratos de carbono, a cetose varia inversamente com a quantidade de proteína consumida. Uma fórmula eficaz e utilizada em contexto clínico é um consumo de gordura que excede o dobro dos hidratos de carbono mais metade da proteína. Por exemplo, 300 g de gordura, 50 g de hidratos de carbono e 100 g de proteína. 


Fases e indução de cetose em indivíduos saudáveis


Podemos caracterizar o processo cetogénico em 4 fases distintas (Figura 2). Numa primeira fase, I, a glicólise exógena é esgotada e as reservas de glicogénio hepáticas severamente diminuídas. Há necessidade de aumentar a produção de glicose no fígado, gluconeogénese, à custa de aminoácidos provenientes da alimentação ou da degradação do tecido muscular esquelético. Esta fase, II, pode prolongar-se por alguns dias e é marcada por um aumento da adrenalina e noradrenalina contra-regulatória, quantificando-se um ligeiro aumento da taxa metabólica e dissipação de calor associada à ineficiência do processo. A insulina continua a descer, a glucagina e o cortisol a subir, aumentando o fluxo de ácidos gordos para o fígado ao mesmo tempo que o oxaloacetato disponível diminui. A produção de corpos cetónicos aumenta, fase III, e começam a ser usados pelo tecido muscular como fonte de energia e parcialmente também pelo cérebro. A necessidade de aminoácidos como percursores de glicose é atenuada uma vez que há um aumento do glicerol disponível, também ele gluconeogénico. O catabolismo muscular diminui, em grande parte também pela redução dos níveis de T3 e aumento da hormona do crescimento que ocorre em situações de stress e privação energética/hidratos de carbono. O cortisol desce também e o seu efeito catabólico aliviado pelo aumento da hormona do crescimento que estimula a sua inactivação periférica em cortisona. Numa fase adaptada, IV, o tecido muscular volta a usar ácidos gordos como substrato preferencial, poupando os corpos cetónicos para o cérebro que satisfaz até 2/3 das suas necessidades por esta via. A pouca glicose disponível, e produzida essencialmente através do glicerol, fica reservada para as células glicolíticas exclusivas, como as da medula renal e eritrócitos. Os níveis de corpos cetónicos atingem o equilíbrio nos 4-6 mM e a taxa de oxidação de glicose desce de 35-40 g/h em repouso para menos de 10 g/h. Em indivíduos diabéticos com produção praticamente nula de insulina, os níveis de corpos cetónicos podem alcançar 10-14 mM, induzindo cetoacidose. Uma condição de urgência hospitalar e potencialmente fatal, mas que não se verifica em indivíduos saudáveis. Em condições normais, os níveis de corpos cetónicos são muito baixos, na ordem dos 0,1 mM.


Durante um processo de jejum prolongado associado a cetose, a perda de azoto e massa muscular vai sendo atenuada com o tempo. A taxa de excreção de azoto urinário diminui, sinal de uma desaceleração do catabolismo proteico. Se considerarmos que só o cérebro utiliza 150 g de glicose por dia em média, e que são necessários 1,75 g de aminoácidos para produzir 1 g de glicose, muito rápido seriamos literalmente “consumidos”. Já percebemos que com o avançar do tempo o glicerol assume o papel de principal precursor de glicose, reduzindo a necessidade de aminoácidos do músculo esquelético. O aumento da hormona do crescimento parece essencial para esta atenuação do catabolismo, potenciando directamente a lipólise no tecido adiposo, libertação de glicerol, e atenuando a proteólise muscular. A administração de inibidores de hormona do crescimento aumenta a excreção de azoto urinário em mais de 50%, evidenciando o seu papel protector do tecido muscular em privação energética ou de hidratos de carbono. Não exerce um efeito anabólico, mas apenas reduz a taxa de perda de músculo. 


Figura 2 - Fases e indução da cetose em indivíduos saudáveis.


Impacto hormonal da cetose


Uma das hormonas que mais “sofre” o impacto da restrição energética ou severa em hidratos de carbono é a leptina. A leptina é produzida essencialmente pelos adipócitos brancos de forma constitutiva, contínua, mas também sobre estímulo agudo da insulina. Entre várias acções centrais e periféricas está o controlo da homeostase energética. Quando a leptina aumenta há um incremento do dispêndio energético, por estimulação da actividade simpática e aumento da T3, e também uma indução de saciedade. Por outro lado, em situações de deficit energético ou quando os níveis de insulina caem, a leptina tendencialmente baixa com impacto negativo no dispêndio energético basal. Numa dieta cetogénica restritiva os níveis de leptina podem cair cerca de 70% ao final de 8 semanas. É verdade que qualquer dieta hipocalórica que induza perda de peso leva a uma quebra nos níveis desta hormona, embora não tão acentuados comparativamente ao impacto desse deficit calórico associado à restrição em hidratos de carbono.


A menor produção de leptina está na base de grande parte das alterações e adaptações que ocorrem na cetose, com o objectivo de conservar energia e tornar o metabolismo mais eficiente. Nomeadamente a redução da produção de T3, hormona tiroideia mais bioactiva. Verifica-se uma redução da actividade das deiodinases 1 e 2 (D1 e D2), com uma consequente inibição da conversão da T4, menos activa, em T3 (5-12 vezes mais activa). A inibição da T3 facilita a retenção de azoto muscular, com menor catabolismo proteico, e a evitar dissipações de energia fúteis sobre a forma de calor. 


A privação de hidratos de carbono está também muitas vezes associada a distúrbios na produção de hormonas sexuais. Em situações extremas e ambientes hostis, a reprodução passa para segundo plano em prol da sobrevivência. É a leptina que controla a produção de GnRH no hipotálamo, hormona que estimula a produção de LH e FSH a nível da hipófise anterior. A inibição destas gonadotropinas leva a uma redução da produção de testosterona, em particular nos homens, e estradiol e progesterona no caso das mulheres. É comum encontrarmos alterações negativas nestas hormonas em indivíduos sob restrição prolongada de hidratos de carbono. Os baixos níveis de insulina tendem também a proporcionar um aumento da SHBG e consequente redução da fracção livre de testosterona. No caso das mulheres estas alterações são mais evidentes nos distúrbios do ciclo menstrual e eventual amnorreia. Aqui também a diminuição da produção de T3 contribui uma vez que se trata de uma hormona importante no espessamento do endométrio.

Em contexto clínico é muito comum encontrarmos estas alterações em indivíduos com uma dieta cetogénica, mas não só. A restrição calórica por si tem um efeito semelhante no sistema hormonal. Mas não nos esqueçamos que a indução de cetose através da restrição de hidratos de carbono é precisamente uma forma de gerar e acelerar as adaptações ao jejum como forma de potenciar a utilização de substratos energéticos alternativos. Mas estas alterações hormonais não devem ser vistas como disfuncionais. Na verdade, são a melhor resposta do organismo a um contexto. Esse contexto é que pode não ser o ideal.


Dietas cetogénicas para perda de peso


Há muita controvérsia relativamente à eficácia das dietas cetogénicas para perda de peso e melhoria da composição corporal, embora a literatura seja relativamente clara nesse assunto. A utilização desta estratégia para perda de peso é antiga e os primeiros relatos remontam a finais do séc XIX. Vários estudos foram feitos entre os anos 50 e 70, e alguns mais recentes com o ressuscitar deste modelo alimentar pelas mãos de Atkins. No entanto, a evidência não deixa dúvidas de que quando o aporte e dispêndio energético são controlados, com estudos em “unidades metabólicas”, não há diferença significativa entre uma dieta cetogénica e normoglucídica no que respeita à perda de peso ou massa gorda. É um facto que no período inicial em que um indivíduo transita para uma deita cetogénica há uma perda de peso rápida mas que não se traduz em melhoria da composição corporal. Essa redução do peso está associada à perda de água pela redução nas reservas de glicogénio. Em média um indivíduo tem 400-500 g de glicogénio reservado, que retém 3-4 Kg de água no tecido muscular em condições de euhidratação. Assim, muito rapidamente se perdem 4-5 Kg no período de dias mas que não se traduzem em perdas de massa gorda. Na verdade, uma dieta restrita em hidratos de carbono é diurética por natureza. A redução dos níveis globais de insulina leva a maiores perdas de sódio na urina e água, acentuando a perda de peso mas não uma melhoria efectiva da composição corporal. E estudos mais recentes em unidades metabólicas sugerem que no período de adaptação à cetose, fase II e III, que pode durar 7-15 dias em média, as perdas de músculo são muito acentuadas devido à necessidade de alocação de aminoácidos musculares para sustentar a gluconeogénese.


As dietas cetogénicas para perda de peso baseiam-se na “hipótese insulínica” da obesidade, falaciosa e errada à partida. A insulina é de facto uma hormona que estimula a reserva de gordura no tecido adiposo, a formação de ácidos gordos a partir de glicose, e impede a libertação dos ácidos gordos presentes nos adipócitos. É no fundo uma hormona anabólica e anti-catabólica. É verdade que ao baixar os níveis de insulina a lípólise e os ácidos gordos livres em circulação aumentam. No entanto, isso não significa que a sua oxidação seja superior às necessidades energéticas, e o que não se usa entra em ciclos fúteis de lipólise/re-esterificação no tecido adiposo. Eu ganho dinheiro todos os meses e não é por isso que sou rico. O que interessa é o saldo. Além disso, a insulina não é absolutamente necessária para a reserva de ácidos gordos provenientes da alimentação nos adipócitos, que representam de longe a maior fatia dos lípidos reservados nestas células. Os próprios adipócitos segregam uma proteína, a ASP (proteína estimulante a acilação) que assegura a captação dos ácidos gordos dos quilomicra de forma independente da insulina. Portanto sim, mesmo sem hidratos de carbono e com níveis baixos de insulina é possível e eficiente o processo de captação e re-esterificação dos lípidos provenientes da alimentação.


Os estudos em ambulatório não são tão claros como os trabalhos em internato, dando espaço a alguma especulação à medida de preconceitos e crenças quanto ao modelo alimentar ideal. Uma análise global à literatura pode sugerir que as dietas mais baixas em hidratos de carbono, mesmo não-cetogénicas, são mais favoráveis a curto prazo, até 6 meses, para perda de peso. No entanto, analisando mais a fundo chegamos à conclusão que essa eventual superioridade se relaciona com uma redução espontânea do consumo energético que pode ser explicada de duas formas. Em primeiro lugar, os grupos alocados para uma dieta low-carb tendem a ter mais suporte da equipa que investiga, e muitas vezes o controlo ou grupo normoglucídico é deixado com uma dieta próxima do habitual. A adesão à restrição calórica é obviamente superior no grupo com maior apoio. Mas para além de questões metodológicas, há uma possível explicação fisiológica para que seja mais fácil em ambulatório manter a restrição energética sob controlo da ingestão de hidratos de carbono. Estudos com indivíduos obesos, tendencialmente insulino-resistentes, apontam para uma maior facilidade em controlar as oscilações da glicemia com um consumo de hidratos de carbono até 40% do total energético. As flutuações da glicemia são monitorizadas por glucoreceptores no cérebro que percecionam grandes variações de amplitude como uma quebra de energia, acionando mecanismos de aumento de apetite para restabelecer os níveis. Assim, há uma redução espontânea do apetite que permitirá um maior controlo da ingestão calórica. Mas reforço que para este fim não é necessário um consumo de hidratos de carbono dentro dos limites da cetose.


É verdade que em cetose um indivíduo tende a ter maior controlo sob o apetite. Quem já experimentou um jejum prolongado também sentiu isso, sendo por vezes mais fácil não comer nada do que comer pouco. O jejum mais longo relatado foi de 382 dias, num indivíduo obeso mórbido que perdeu 120 kg. Um caso real publicado em 1973. As suas reservas permitiram mantê-lo vivo em cetose durante todo esse tempo, sem enlouquecer de fome. Não só pela manutenção da glicemia constante e baixa, mas principalmente pela menor produção de grelina, uma hormona de efeito orexigénico (inibidora de apetite) produzida maioritariamente no estômago, e pelo aumento da colecistoquinina (CCK) que também se parece verificar em cetose. Pensa-se que os próprios corpos cetónicos possam ter um efeito anorexigénico a nível central e dessa forma facilitarem a estabilização do apetite e uma redução espontânea do consumo energético, por mais contraintuitivo que possa parecer dado o elevado consumo de gordura. Mas a verdade é que os estudos são consistentes nesta redução voluntária do aporte calórico, embora em ambulatório exista uma tendência para menor adesão com o passar do tempo em dieta. Seja ela de que tipo for. Não existe uma “vantagem metabólica”, e no fundo tudo se resume ao balanço energético. Mas isto não significa que seja o melhor método para manter uma relação músculo/gordura favorável.


O problema é que com o retorno a uma dieta normoglucídica, tudo o que se perdeu tende a voltar e o apetite muito difícil de controlar. O refeedingdispara a grelina, a fome aumenta, e o consumo calórico também. Há uma inibição da utilização de hidratos de carbono como fonte de energia devido a uma menor actividade adaptativa da piruvato desidrogenase (PDH). O glicogénio muscular aumenta, arrastando água para o músculo, e o peso sobe. Os níveis de insulina também vão aumentar, promovendo uma maior recaptação de sódio a nível renal. Mais água é retida, o peso dispara. A probabilidade de ficarmos iguais ao que estávamos antes é grande, e em pouco tempo. Se não piores, com menos massa magra.


Dietas cetogénicas, exercício, e ganhos de massa magra


Num estudo publicado em 2018 avaliou-se o impacto de uma dieta cetogénica sem deficit calórico (39 kcal/Kg) comparativamente a um regime normoglucídico isoenergético (55% da energia) na composição corporal ao fim de 8 semanas. Ambas as intervenções forneciam 2 g/Kg de proteína e os grupos seguiam um protocolo semelhante de treino resistido. Os resultados indicam que mesmo em condições de excedente energético, proteico, e treino de força, a dieta cetogénica não permitiu ganhos de massa magra. Ao contrário da intervenção normoglucídica, onde se verificou um incremento significativo de cerca de 3%. Na verdade até se perdeu músculo.


Apesar de todo o buzz nas redes sociais, ganhar músculo em cetose será um fenómeno raro em indivíduos com experiência de treino, mesmo com um consumo proteico elevado. Não só o ambiente hormonal é desfavorável, com redução dos níveis de testosterona total, livre e de insulina, facilitando o catabolismo, como os baixos níveis de glicogénio e status energético muscular negativo tendem a inibir a síntese proteica. Os níveis de glicogénio são sensores da energia muscular e quando estão baixos há uma activação da AMPK, uma enzima responsável para regulação do metabolismo celular. Apenas 6 semanas de uma dieta cetogénica, sem exercício, podem reduzir as reservas de glicogénio muscular em 30-40%, nível que encontramos no quadrícipe de atletas após 20 sets de leg-press! Activada em situações de deficit energético e baixo glicogénio, a AMPK inibe processos anabólicos e favorece vias que produzem energia. Ora, a síntese proteica é um dos processos que necessita de um input de energia e que sofre deste efeito inibitório via AMPK. Eu sei que existe um estudo a mostrar um aumento da síntese proteica pós-treino com uma dieta cetogénica comparável a condições nutricionais normais. Mas é abusivo e falacioso usar este facto para fundamentar a utilização de dietas cetogénicas para ganhos de massa magra. Isto porque se sabe que no pós-treino o efeito inibitório da AMPK é atenuado, e, mais do que isso, os ganhos de músculo não são dependentes apenas do aumento da síntese proteica aguda nas horas que sucedem a um treino. É sim resultado da maior retenção de azoto, um balanço entre a síntese e degradação proteica que tende a ser desfavorável em cetose. Os hidratos de carbono, e insulina, são essencialmente anti-catabólicos no pós-treino e tendem a favorecer essa retenção de azoto.


A utilização de dietas cetogénicas em contexto desportivo é também controversa. Não são poucos os relatos de “atletas” de desempenho invejável a alegar a superioridade deste modelo. Não duvidando a veracidade dos relatos, serão certamente as excepções. Apenas em eventos de longas distâncias e duração, como ultra-maratonas e distâncias equivalentes, a cetose pode apresentar algum benefício, ou pelo menos não ser contraproducente. Ou apresenta-se como possível metodologia de treino em esforços aeróbios para aumentar a capacidade mitocondrial via biogénese. Mas nunca como enquadramento ideal para o pico de performance atlética, com a eventual excepção das ultra-distâncias em que a oxidação de ácidos gordos e corpos cetónicos é um substrato energético viável nas intensidades impostas.


Manter intensidades elevadas, >80-85% em cetose e com baixas reservas de glicogénio será certamente muito difícil (Figura 3). Ou uma boa performance no treino resistido de volume médio-alto, clássico para hipertrofia muscular. E a explicação é simples. A utilização de corpos cetónicos como fonte de energia pressupõe a sua reconversão em acetil-CoA e integração no ciclo dos ácidos tricarboxílicos. A energia é gerada pela via mitocondrial, dependente do fluxo de oxigénio que é limitante a intensidades elevadas. No treino resistido, por exemplo, as necessidades energéticas do músculo em contracção podem aumentar até 1000 vezes, insustentável para a capacidade de transporte de oxigénio até no tecido muscular. Apenas a glicólise tem capacidade de sustentar essas necessidades pelo aumento da velocidade do fluxo da via, regulada para fosfofrutocinase 1 (PFK1). A diminuição do rácio ATP/AMP, aumento do Pi, e Frutose-2,6-BiP, estimulam a actividade da PFK1 e a velocidade de produção de piruvato, produto final da glicólise. Em condições de elevada demanda energética, o oxigénio torna-se limitante como aceitador de electrões da cadeia transportadora, levando à acumulação de NADH proveniente do ciclo de Krebs. Este NADH inibe a piruvato desidrogenase (PDH), enzima responsável pela conversão do piruvato a acetil-CoA e transporte para a mitocondria. O piruvato é reduzido a lactato, regenerando o NAD citoplasmático de forma a manter o fluxo glicolítico elevado. No entanto, em cetose o fluxo glicolítico é mínimo, comprometendo a produção de energia em intensidades elevadas pelo sistema anaeróbio. Apenas o fosfagénio (fosfocreatina e ATP livre) o consegue manter, mas por tempo muito limitado (<10 s). A cetose não compromete o trabalho explosivo ou a capacidade de produção de força máxima com descansos longos que permitam a regeneração da fosfocreatina, mas em volumes de actividade superior e a intensidades máximas ou submáximas é bastante limitante. Como seria de esperar, a produção de lactato é também menor em cetose, e daí os relatos de menos sintomas físicos da sua acumulação. O que não significa melhor rendimento, nem sequer melhor recuperação.


Figura 3 - Níveis de glicogénio em restrição de hidratos de carbono e desempenho. Adaptado de Burke L, 2015


Conclusão


As dietas cetogénicas não parecem ser superiores a outras estratégias isocalóricas para perda de peso, e menos ainda para melhoria da composição corporal a longo prazo. É o deficit energético que dita a perda de peso, independentemente da composição macronutricional da dieta. E no que toca à manutenção da massa magra, a restrição severa de hidratos de carbono pode ser menos favorável embora na fase adaptada as perdas de músculo não pareçam ser mais aceleradas do que com regimes normoglucídicos. É verdade que a cetose parece promover maior saciedade e isso por si explicar a maior facilidade de adesão espontânea a um regime hipocalórico, e a eficácia relatada em alguns casos. No entanto, fica claro que a maior fatia do peso perdido nas fases iniciais não é gordura, mas sim água e uma proporção de massa muscular superior ao que seria desejável.


Não existe evidência de que a cetose possa ser um processo metabólico de interesse para atletas que procuram desempenho, embora fique em aberto o recurso a esta estratégia como metodologia de treino para aumento da biogénese mitocondrial e capacidade aeróbia. Mas em esforço, os hidratos de carbono serão sempre superiores a intensidades compatíveis com tempos e desempenhos vencedores. É como usar gasolina super num Ferrari. Ele vai andar na mesma, mas o rendimento vai ficar aquém das suas capacidades. E quando o objectivo é ganhar massa muscular, a cetogénese está longe de ser um processo eficiente, mesmo em excedente energético. Embora a síntese proteica em resposta ao treino não fique comprometida, é importante salientar que este é um minor endpoint quando o objectivo é promover adaptações hipertróficas no músculo. Estas dependem do balanço azotado e retenção muscular, resultado da síntese e da degradação proteica. Numa dieta cetogénica o turnover proteico é superior e espera-se um catabolismo também ele maior pelo ambiente hormonal condicionado.


É um facto que existe aplicabilidade clínica para as dietas cetogénicas, reconhecida desde os anos 40 no tratamento da epilepsia e convulsões. Efeito mediado em grosso modo por uma redução da actividade neuronal. Também têm sido estudadas no tratamento do cancro, em particular glioblastoma, mas aqui com resultados bem mais cinzentos e questionáveis. Os estudos são de má qualidade metodológica, de pequena dimensão, não têm grupo controlo, e os pacientes estão a receber tratamento convencional simultâneo por radio e quimioterapia. Mas estas são questões que saem do âmbito desta exposição que se foca no impacto das dietas cetogénicas na composição corporal e performance desportiva.


Por tudo isto, a minha opinião sobre a dieta cetogénica fica clara. Não lhes vejo utilidade ou motivo para serem assumidas como estratégia de perda de peso ou em contexto desportivo. Na verdade, a minha experiência diz-me que a médio prazo se verifica uma deterioração da composição corporal, embora inicialmente possa existir satisfação com os resultados. A gordura abdominal subcutânea aumenta, a massa magra diminui, o tónus muscular perde-se pelo baixo teor de glicogénio e água intracelular, para além das quebras de rendimento. Além disso, não é fácil sustentar um regime cetogénico a longo prazo, e a transição para uma dieta tradicional, com um maior teor de hidratos de carbono, é um período crítico e frustrante em que o corpo se “vinga” do estado de privação simulado pela cetose.



Referências


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